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O “dicionário” de Manoel de Barros que o poeta chamava de “idioleto archaico”

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A ideia de reunir os “vocábulos” de MB surgiu de um telefonema de Sérgio de Souza (Serjão), editor da revista “Caros Amigos,” ao próprio poeta. A revista publicaria os verbetes com o título “Manoel de Barros de A a Z “.  

O texto no Capítulo VIII é de Douglas Diegues, sobre um poema inédito que seria publicado na primeira edição de “O Livro das Ignorãças”. Mas não passou pelo “crivo” de Stella, por conter a expressão “phodem”. Os poucos exemplares impressos foram distribuídos a um grupo de amigos.  

A escrivaninha onde Manoel de Barros lapidava as palavras

De formação católica, Stella discordava das transgressões poéticas do marido, “lapidando” suas verbalizações mais afoitas. Mesmo com tanto zelo, passou “batido” por ela, em “O Livro das Ignorãças” uma das questões censuradas na prova do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2019.

Contrariando a Bíblia, Manoel escreveu: “No descomeço era o verbo”, uma oposição a “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus (João 1:1-4)”. Na justificativa, os censores explicam que usar tal verso “fere sentimento religioso e a liberdade de crença”.  

Do internato de Campo Grande (1928), ao colégio interno no Rio de Janeiro (1934), foi na década de 1960, ainda no Rio, que MB conheceu o jornalista Sérgio de Souza. Sérgio era o editor de texto de “Realidade” e tinha um modo particular de trabalhar a escrita nas reportagens. 

Tendo como ferramenta apenas um lápis nº 1, ele pinçava as palavras para cortar, realçar ou substituir, na busca da clareza e da precisão. Na imprensa brasileira daquela época, não se cuidava da palavra. Uma reforma editorial dos jornais do Rio tinha implantado o copidesque, de inspiração americana: um redator reescrevia o original dos repórteres, de forma que todo o jornal parecia ter sido escrito por um único (e bom) redator. A fórmula influenciou as redações em todo o país.

O poeta e Sérgio logo se aproximaram, tinham personalidades parecidas. Além de generosos, eram avessos a entrevistas, até tímidos diante de uma câmera ou microfone.

Os dois eram serenos, falavam baixo, com um sorriso amarelo, meio que infantis. Eram amáveis, mas rigorosos no trato da palavra. Se conheceram em uma redação, onde o poeta levava poemas para publicação. Sérgio mexia no texto, buscando comunicabilidade e emoção, mas sem alterar o estilo do autor. 

Curvado sobre a mesa, em silêncio, Sérgio, com suas mãos compridas, dedos longos e finos, assinalava os textos a lápis.

O lanche com o poeta, uma amizade que fez de Bosco Martins praticamente membro da família

Quando circulava uma palavra com o grafite, ela estava condenada, era preciso achar a palavra certa. Também não era uma boa notícia quando riscava uma frase, um parágrafo, ou um trecho inteiro. Só se via alguma bulha na sala quando quebrava a ponta do lápis: “Alguém pegou o apontador?”

O poeta cumpria seus desígnios, entre leituras de clássicos da literatura portuguesa e francesa. E se inebriava em sua vocação pela palavra e poesia nos Sermões do padre Antônio Vieira. Além do padre Vieira, citava as obras do padre Manuel Bernardes e frei Joaquim de Santa Rosa do Viterbo, cujo dicionários ostentava em sua biblioteca de tecer neologismos. 

Manoel deu seus primeiros palpites neste Abecedário, mas depois largou de mão. Optamos em dar continuidade à coletânea em homenagem a esses seres da linguagem. 

O que de fato marca a poesia de Manoel de Barros é o cuidado que ele tinha com a palavra, tão racional e, paradoxalmente, mergulhado em um universo onírico. Estávamos ali, ao lado de verdadeiros emblemas literários, Manoel um semeador de poesias e Sérgio um semeador de informações a espalhar revistas. 

Sérgio era um repórter espetacular, editor e revisor implacável, perfeccionista, um dos maiores difusores de publicações que conheci, tão gentil quanto rigoroso na relação com a linguagem escrita.

Hostil a entrevistas como o poeta, seu ideal era tão latente que escreveu o Manual de Redação da revista “Caros Amigos”: “Como não enriquecer na profissão”. 

Tive uma convivência muito gratificante com Serjão. O convite para ser o correspondente da revista no Brasil Central veio com a ressalva de que não havia salário. Alguma remuneração viria da venda de assinaturas e anúncios. Eu teria que distribuir os exemplares e produzir boas pautas da região.

É óbvio que não vendi nada e tive imenso prazer de ser o correspondente da publicação no Centro-Oeste brasileiro. Época em quer eu frequentava o escritório de Manoel de Barros, situado na esquina das ruas 15 de Novembro e Rui Barbosa (menos de duas quadras onde hoje está a estátua do poeta em seu sofá). 

MB era fazendeiro no Pantanal e invariavelmente ia ao escritório, administrado pelo filho, que cuidava da venda de gado. O poeta era avesso a tarefas administrativas e nos encontrávamos ali, quando eu levava exemplares do “Jornal do Brasil”, “O Globo”, e da revista “Caros Amigos”. 

MB morou por muito tempo no Rio e gostava de ler os jornais cariocas e passávamos um bom tempo comentando as notícias. Às vezes me pedia mais exemplares para dar aos amigos. Cheguei até a vender algumas assinaturas, pouco mais de uma dúzia, mas o fato é que naquela época comecei a cultivar duas amizades com grande similaridade literária.

Curiosamente, MB e Sérgio de Souza tinham em comum a construção das palavras na ponta do lápis (detalhe: tinha de ser o de número 1). Melhor dizendo, ambos usavam o lápis até o último risco do grafite. Manoel, franzino, menos de 1,60m, dedos curtos; Serjão, compleição encorpada, dedos longos. A impressão que eu tinha era de que eles eram guiados pelo lápis e Sérgio usava o material como uma batuta na regência dos textos. Riscava frases, usava a pontinha do grafite que sobrava para circular as palavras que julgava impróprias e assim conduzia a edição de textos que alvoroçavam o mundo editorial. 

Para Manoel de Barros, o lápis o transportava, o fazia surfar nas palavras, guardadas nos cadernos de rascunhos e que compõem o arcabouço que denominei de o “abecedário manoelês”.

Generosos, humildes, donos de uma simplicidade sem tamanho, despojados, mas muito fiéis às suas convicções literárias. As lembranças de Serjão me permitirão escrever um outro livro, até porque a era de ouro (no sentido figurado) das publicações de revista passou necessariamente pelo inconfundível estilo de Sérgio, que foi editor da revista “Realidade”, uma das primeiras publicações de projeção nacional, fenômeno editorial.

Como MB, Serjão era implacável à regra literal, mas não sem incorporar a emoção e desnudar os mitos e a ignorância do intelecto, valorizando, sobretudo, a racionalidade. A capacidade de MB de empregar neologismos e sinestesias em suas poesias fez com que sua obra fosse considerada surreal. Mas, na verdade, o fato dele popularizar o conhecimento não deixa dúvida de que estamos diante de um dos principais autores da geração modernista. Sérgio de Souza, um dos maiores editores e intérpretes da vida nua e crua, tão racional quanto emotivo, retratando tragédias, rompendo barreiras e contrapondo hipocrisias sociais.

Pode-se dizer que o sonho e a racionalidade se completam e para MB a linguagem se constrói na forma como se sente e vivenciamos, não importando onde nem quando. Podemos observar essas características singulares no glossário que extraímos ao longo dessa convivência com o poeta, que escrevia como se estivesse esculpindo a palavra e por vezes a transformava em imagem.

O “abecedário” de MB permite a construção de uma linguagem simples, coloquial, vanguardista e poética. MB se enebriava buscando palavras e seus significados no dicionário e assim nascia, como ele próprio batizou, o “idioleto manoelês archaico”.

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