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Nove anos após a morte de Manoel de Barros, jornalista revela confidências do poeta

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Amigo e confidente de Manoel de Barros, Bosco Martins lança para todo o público versão impressa de livro que traz detalhes sobre a introspectiva trajetória de um dos maiores nomes do Pós-Modernismo 

Como o poeta Manoel de Barros viveu a fase mais fértil de criação pensando palavra por palavra enquanto praticava o ócio e como lidava com a trajetória de assombro e descobertas no mundo literário. 

As revelações do íntimo e o cotidiano criativo de Manoel de Barros vêm a público no livro “Diálogos do Ócio”, escrito pelo jornalista Bosco Martins, que durante 30 anos desfrutou da amizade com o poeta e, mais que amigo, tornou-se confidente e interlocutor. Manoel de Barros tinha o hábito de conversar com o jornalista, confidenciar intimidades e, sobretudo, praticar o ócio. 

O livro chega na versão impressa, acessível em livrarias e outros espaços, depois de ser editado em plataforma digital pela Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em 2022, sendo disponibilizado no repositório Institucional (https://repositorio.ufms.br/handle/123456789/5454). A publicação impressa é da Editora Los Bugres, do escritor Douglas Diegues, que fala sobre Manoel de Barros em um dos capítulos do livro.   

  • Aspectos íntimos da vida do poeta trazidos por Bosco Martins são considerados por acadêmicos e intelectuais de Mato Grosso do Sul como com um resgate importante da memória de Manoel de Barros, porque permite ao público entender até onde a genialidade do poeta pode ser compreendida.

Bosco Martins apresenta seu livro como “inventário” dos 30 anos de convivência com o poeta e o faz com muita naturalidade e fidelidade ao pensamento de Manoel de Barros e a forma como ele manifestava as “inquietudes” por meio da escrita, lapidando palavras e criando sua própria linguagem. O vocabulário, aliás, é um capítulo particular da publicação do jornalista, pois marca a presença de um segundo jornalista no restrito círculo de amigos do poeta, Sérgio de Souza (Serjão), editor da revista “Caros Amigos”, que sugeriu editar os verbetes criados pelo poeta, sugerindo publicar um glossário intitulado “Manoel de Barros de A a Z “.  

Livro valoriza produção científica e literária – Na apresentação da versão digital lançada em 2022, o reitor da UFMS, Marcelo Turine, destaca a importância do livro para a comunidade acadêmica e à produção científica e literária. Faz o leitor “compreender” a vida de quem “via como ninguém a grandeza do insignificante”. 

Mostra também como prosperou uma relação em que se “dividia não só um amor incomum pela palavra dita e desconstruída pelo olhar do poeta, mas também uma amizade profunda, dessas que tornam um e outro confidentes das molecagens da juventude às expressões sinceras do mundo que os rodeiam”.

Cultuado no meio jurídico – “Diálogos do Ócio” em sua forma impressa chega como um filme na cabeça de quem em algum momento, cruzou os caminhos do poeta ou estabeleceu uma ponte para mergulhar em sua obra. Entre os que tiveram esse raro prazer está o desembargador Sérgio Fernandes Martins, escritor, articulista, membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e atual presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, para quem o livro de Bosco Martins, além do passeio pela biografia e trajetória do poeta, traz uma radiografia do cotidiano de Manoel de Barros e sua maneira de expressar.

Formado na mesma Faculdade de Direito da UFRJ onde Manoel de Barros estudou, o desembargador ficou extremamente feliz com a publicação impressa do livro, por resgatar lembranças sobre fatos do período em que conheceu o poeta, no início da década de 1980, por quem nutria grande admiração. “Copiava as poesias dele em cartolinas, afixando-as nas paredes da faculdade. Quando vinha a Campo Grande nas férias, visitava-o na casa da rua Piratininga e retornava ao Rio sempre com novas ideias de como divulgar na cidade maravilhosa a obra do nosso poeta maior”. 

Manoel de Barros foi marcante e sempre esteve presente na iniciação e formação da vida adulta de Sérgio Martins, como ele conta. Incentivou o filme “Caramujo-Flor”, de Joel Pizzini, sobre a vida do poeta, participou de grupo de escritores que criou uma revista literária e quis reforçar sua admiração levando o filho de sete anos para conhecer de perto seu ídolo, que retribuiu a visita com dedicatória autografada no livro “Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo”. Manoel de Barros escreveu: “Para o Sérgio Augusto, com todo o carinho. Do vô Nequinho”. 

Sérgio Martins recorda fato curioso que aconteceu em uma reunião no gabinete do presidente do Supremo Tribunal Federal à época, Ayres Britto, quando desafiado a mostrar um poema de Manoel de Barros, recitou: “Para mim poderoso não é aquele que descobre o ouro; poderoso pra mim é aquele que descobre as insignificâncias do mundo e as nossas. Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil”. Ayres Britto pediu a Sérgio Martins que fosse portador de bilhete em que pedia para conhecer o poeta pessoalmente, o que acabou acontecendo.

“Resta-me aqui aplaudir Bosco Martins por nos permitir reviver, sentar ao lado do grande poeta e olhar o mundo por perspectiva única semeada para sempre por este ser humano inigualável”.

Dois vanguardistas, duas trajetórias – O livro de Bosco Martins vai além ao trazer a interlocução de dois vanguardistas, o poeta e o jornalista José Hamilton Ribeiro, convidado pelo autor para prefaciar “Diálogos do Ócio”. Com muita desenvoltura José Hamilton, ex-correspondente de guerra e ícone do jornalismo rural, que abriu as fronteiras do interior brasileiro, sintetiza a publicação de Bosco Martins realçando o conteúdo com o qual tinha especial identificação. Hamilton e Manoel de Barros tinham, em comum, a íntima relação com o Pantanal. Trilharam caminhos totalmente diferentes, mas o destino os colocou no universo pantaneiro.

José Hamilton Ribeiro
  • As reportagens no Pantanal inspiraram duas publicações de José Hamilton – o livro “Pantanal, Amor Baguá” (um hino de amor à vida simples, bela e selvagem da região), e “Rio Paraguai – Das Nascentes à Foz”. Nas obras de Manoel de Barros e de José Hamilton, o mundo viu a importância de lutar pela preservação do Pantanal, a possibilidade de uma vida solta e livre de cercas e muros.

“Ele era muito simples, enxergava como ninguém a importância das pequenas coisas e as criações ‘sobre nada’ abalaram as estruturas literárias, mas sempre estiveram na vanguarda. Suas obras surpreendiam porque eram transcendentais. Manoel de Barros cultivou a infância até os seus últimos dias”, conta Bosco Martins.

No Prefácio de “Diálogos do Ócio, José Hamilton Ribeiro diz que Manoel de Barros não quis ser professor de ninguém. Tampouco pretendeu atiçar paixões. “Escrevia para deleitar, suponho que, primeiro, a si próprio. Uma conquista literária vinda de surpresa na biblioteca do colégio, ou no “caderno de rascunhos” onde fazia seus poemas, comparando a criação ao orgasmo, como relata em um dos “Diálogos do Ócio” deste livro”.

“Desde meu primeiro contato com Manoel de Barros rolou entre nós uma simpatia que chegou ao ponto dele me indicar, ao Diretor e Produtor de TV Cláudio Savaget, para que eu fosse narrador de alguns de seus poemas no documentário “Paixão pela Palavra” da Globo News. Estive com Manoel de Barros na exibição do programa mais de uma vez, ora acompanhando Bosco Martins em algumas de suas constantes visitas ao poeta, ora levado por Pedro Spíndola”, conta José Hamilton.

  • José Hamilton diz que “Diálogos do Ócio” é uma contribuição riquíssima para o entendimento do poeta Manoel de Barros e “uma celebração da sua finíssima cabeça”.

“Bosco Martins sempre esteve próximo do mundo de Manoel de Barros. Tendo sido seu precoce e sincero admirador, desde que, caipira do interior de São Paulo, escolheu viver no Mato Grosso do Sul no início da década de 1980. Acompanhou de perto a vida do poeta, e guarda, na memória e em documentos, eventualmente tudo que foi publicado (e o que não foi publicado…) sobre o poeta. Bosco usa a usina de ideias que tem permanentemente na cabeça para promover movimentos de celebração de Manoel de Barros como um grande autor e um poeta de lugar assegurado na História da Literatura Brasileira”.

Palavreado, ”idioleto” e censura da esposa – Texto do escritor Douglas Diegues sobre poema inédito que seria publicado na primeira edição de “O Livro das Ignorãças” não passou pelo “crivo” da esposa do poeta por conter a expressão “phodem”. 

De formação católica, Stella Barros discordava das transgressões poéticas do marido, “lapidando” suas verbalizações mais afoitas. Mesmo com tanto zelo, passou “batido” por ela na publicação uma das questões censuradas na prova do Enem de 2019. Contrariando a Bíblia, Manoel escreveu: “No descomeço era o verbo”, uma oposição a “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus (João 1:1-4)”. Na justificativa, os censores explicam que usar tal verso “fere sentimento religioso e a liberdade de crença”.  

Cultivar palavras também era algo muito particular do jornalista Sérgio de Souza, editor da Revista Realidade. Ele e Manoel de Barros se conheceram no Rio, na década de 1960. O que tinham em comum? O lápis nº 1. O cuidado com a palavra e o realce da escrita. O “abecedário” que Serjão idealizara publicar ganhou forma pelo cuidado do poeta com a palavra, do racional ao universo onírico, e perfeccionismo implacável do editor. Para Manoel de Barros, o lápis o transportava, o fazia surfar nas palavras, guardadas nos cadernos de rascunhos e que compõem o arcabouço que “Diálogos do Ócio” traz intitulado de “Abecedário Manoelês”.

O jornalista e escritor Bosco Martins destaca que Manoel de Barros expunha a completude do sonho e a racionalidade, na forma como se sente e como vivenciamos, características singulares que podem ser observadas no glossário adotado pelo poeta, em linguagem poética simples, coloquial e vanguardista, daí o assombro diante da sua obra. Assim nascia, como o próprio Manoel de Barros batizou, o “idioleto manoelês archaico”, que agora torna-se público em “Diálogos do Ócio”.

O livro – Em 300 páginas, divididas em 9 capítulos, Bosco Martins revela como Manoel de Barros se tornou um poeta “além do tempo e da concepção multicultural… que transpôs conceitos e preconceitos dos hábitos e conhecimentos do homem, mostrando que o inútil é fonte de criação, assim como no ócio também se exercita o pensamento”, trazendo o lado fazendeiro – no prefácio de José Hamilton Ribeiro -, seu caráter vaidoso, porém humilde e tópicos de “entrevistas como ninguém fez”.

Erudito que valorizava o simples – “Manoel de Barros adorava ler e lia bastante para cultuar palavras – leitor dos Sermões de padre Vieira, habituou-se a consultar dicionários etimológicos para criar seus versos numa linguagem artesanalmente construída, sem se ater a convenções gramaticais ou sociais, mas sempre em busca da simplicidade. (…) Poeta sui generis, Manoel de Barros inventou sua própria literatura. Eu a chamo de “literatura pantaneira” ou, de outro modo, “literatura do futuro”, porque se trata de configuração única, de tão singular. Não é nenhum despropósito afirmar que, na literatura “pantaneira”, a tríade próclise, mesóclise e ênclise nunca mais foi a mesma. Sem sua existência não haveria a “reinvenção” poética reconhecida e aclamada por colegas como Millôr Fernandes e Drummond de Andrade, dos quais o nosso poeta também era um grande admirador”.

 

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