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Um Tratado Sobre o Simples que Trata de Nós

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“Diálogos do Ócio faz a mágica e fluente combinação entre reportagem, historicismo e crônica”

 

Por Edson Moraes*

Em “Diálogos do Ócio,” enquanto Bosco Martins entardecia, Manoel jogava conversas. Soube disso, e desse jeito, pelo próprio Manoel. E tomava sempre o cuidado de não entardecer como se esperasse a noite ou fizesse o anúncio da manhã. Às 24 horas do dia convencional eram maiúsculas convenções de uma ordem lógica e cartesiana que talvez não coubessem na simplicidade tão gigantescamente minúscula do Manoel.

A palavra era de não medir, de não pesar, de não definir se dia era antes ou depois da noite, se ontem vinha antes do amanhã. Quando Bosco me apresentou os originais de “Diálogos do Ócio” comecei a desconfiar da existência de contrassiginificados no verbo e nos pensares. Afinal, estava diante de uma das revelações que me haviam contrariado, e que me fez, de tão contrário, um perseguidor da ilógica. Eu queria, na provocação do Bosco, entender porque não precisava entender que “a maior riqueza do homem é a sua incompletude”.

Então descobri que o Manoel havia provocado o Bosco ao fazê-lo também um perseguidor do ilógico. Era o jeitinho trivial de acenar pra quem quisesse flertar com a simplicidade. Daí me convenci.

Explicar pra quê? Compreender pra quê? Completar o quê se as “Palavras que me aceitam como sou eu não aceito”?.

Por isto Manoel.

Por isto Bosco.

Leio um livro e vejo nele um Bosco multiincompleto de tão feliz, de tão se afirmar: “Por isto bicho. Por isto chão. Por isto cipó. Por isto corixo. Por isto micuim. Por isto asa.

Por isto fremo.

Por isto vadio”.

Escorrido e ansioso na beira dos tempos, ensimesmado diante de uma amizade centenária e absurdamente fértil no partir de reticências…ah, as reticências que nos dão sempre a possibilidade de continuar, de fazer, de não fazer, de ser tudo e nada sem deixar de querer.

Ah, vá lá saber como se produz tanto na azáfama do ócio…não é Bosco?

E apesar de cirandear no conflito com seus porquês, o Bosco me honrou ao me permitir ler e reler as mais de 340 páginas de “Diálogos do Ócio”, o que fiz com duas preocupações: uma, a de encontrar algo que o autor não havia confessado a si mesmo nas tertúlias bilaterais com o poeta; outra, para me convencer que a paciente elaboração intelectual e literária teria sido de fato uma perseguição obstinada ao simples que se não vê às vezes de tão perto.

Em síntese, posso afirmar que “Diálogos do Ócio” faz a mágica e fluente combinação entre reportagem, historicismo e crônica; envereda por trieiros biográficos, ilustra-se com fotos que se apresentam como alegorias fictícias ou factuais e ainda traz o didatismo incentivador ao bom e necessário exercício da leitura.

Fui a algumas influências que nos cercam quando está em cena o tal do pós-modernismo. Busquei num universo amplo e despojado de autores, alguns indicativos de cabeceira. Ao escrever sobre sua intensa amizade com o poeta, Bosco nos induz, por exemplo, à leitura de uma das confissões de Clarice Lispector: “(…)Sou composta por urgência/: minhas alegrias são intensas/minhas tristezas, absolutas/Entupo-me de ausências/Esvazio-me de excessos”.

Numa obra com os ilustres endossos de José Hamilton Ribeiro, Sérgio Fernandes Martins e Douglas Diegues, trazendo consigo os afagos atemporais de Millôr Fernandes, Glorinha Sá Rosa, Idara Duncan, Pedro Spíndola, o olhar e a pena de Bosco Martins selecionaram capítulos frasísticos de raríssima singularidade. Em seu “Auto-Retrato Falado”, o poeta nos dá este presente: “Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo”.

Ou, para entronizar a palavra, esta sentença em contraditório: “A mim me parece que é mais do que nunca necessária a poesia. Para lembrar aos homens o valor das coisas desimportantes, das coisas gratuitas”.

Bosco Martins viveu e experimentou, em momentos únicos, alguns contundentes desabafos do poeta. Como na vez em que comentou que os críticos tinham medo dele. E a bem-humorada passagem, tendo como co-protagonista a sempre presente Stella, que pediu ao marido responder à altura a insolência de um “intelectualóide” que o estava tratando como “um qualquer”. Manoel ouviu a esposa, relutou um pouco, e resolveu dar o troco, na categoria de um Bernardo, seu alter-ego: “Os jornais vivem publicando que sou o maior poeta do Brasil. Achos isso uma tremenda bobagem, mas nunca mandei carta reclamando. Por que iria reclamar agora?”

Creio que deve ter sido extremamente difícil ao Bosco evitar ou ao menos driblar os clichês. Não que o poeta fosse um inimigo do lugar-comum.  Ao contrário, davam-se muito bem, como nesta sentença: “Desfazer o normal há de ser uma norma”. E o autor soube, com rara felicidade, desexplicar a razão desta materialidade latente no reconstruir da palavra. Explicou desexplicando, para que o entendimento fosse além da usura interpretativa e se abrisse, voando, libertino, nas asas primárias da simplicidade.

O Manoelês e as poesias inéditas, inclusa a “censurada” por Stella, os acúmulos de saber e de não-saber propostos por Bandeira, Rimbaud, Drummond, Rilke, Vieira, Graciliano, Clarice e tantos outros das lavras atrevidas, tudo isto enseja ao leitor uma proximidade com o poeta e com o autor da obra que o apresenta na confissão íntima de uma amizade que desrespeita os marcos terrenos para afirmar-se na plenitude da existência sem fim.

Pra quê terminar se só sabemos começar?

É a pergunta cuja resposta pode estar numa vadiagem destas que nos sugerem os “Diálogos do Ócio”.

Foto: Acervo da Casa Quintal Manoel de Barros

(*) Edson Moraes é jornalista, escritor e poeta. Em 17/12/2023.

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