Juízes fazem curso de linguagem simples e se preparam para sair da “bolha” do “juridiquês”. Mudança é defendida pela Associação dos Magistrados desde 2005
Quase 20 anos depois da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) lançar campanha pela simplificação da linguagem no Judiciário, finalmente os tribunais começam a adotar vocabulário inteligível, ou seja, que possa ser entendido pela população. O fim do juridiquês, linguagem arcaica, carregada de termos em latim, língua desenvolvida no século VII antes de Cristo, foi decretado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em novembro do ano passado, definindo um período de transição, que começa com cursos de capacitação de magistrados e demais operadores do Direito.
A linguagem jurídica (juridiquês) sempre foi um obstáculo à compreensão da população em geral, enquanto que para os operadores do Direito – magistrados, advogados, promotores de Justiça – ainda é utilizado como forma de demonstrar conhecimento. Quanto mais se faz uso [desnecessário e excessivo] de jargões técnicos e jurídicos de Direito e citações em latim, maior é o poder de conhecimento atribuído ao seu interlocutor.
Ao longo do tempo, no entanto, ficou provado que a linguagem “viciada”, mais que uma demonstração de poder e enriquecimento do vocabulário, tornou-se um obstáculo à compreensão popular e barreira à aproximação da Justiça com os cidadãos. Sem contar que a linguagem rebuscada e carregada de termos técnicos ainda pode dar margem a interpretações equivocadas e discussões inúteis, sem objetividade.
Expressões como ex nunc (que na literalidade quer dizer desde agora), bis in idem, data vênia, a quo, ad quem, sucumbência, jurisprudência, em pouco tempo não deverão mais ser vistos em transcrições processuais. No curso de popularização da linguagem jurídica não há menção ao uso sistemático de termos em latim, mas há uma opinião geral de que há excesso no seu uso.
A transição no TJMS
A transição do vocabulário arcaico para a linguagem popular no Tribunal de Justiça, em busca de uma comunicação acessível e compreensível, começou este mês com a capacitação de magistrados no curso “Linguagem Simples no Poder Judiciário: inclusão e garantia de direitos”. O curso, além de “ensinar” a falar a língua que o povo entende, serve também como “programa de formação continuada, vitaliciamento e promoção de magistrados”, segundo o TJMS.
De acordo com o Tribunal de Justiça, a formação no sentido da transição de linguagem, “é a primeira a ser credenciada pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados”.
“Além de inserir os magistrados rumo a uma justiça inclusiva, ao ressaltar a importância de uma comunicação simples no contexto judiciário, o curso atende o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples”, destaca o TJMS.
A mudança de linguagem chega também em um momento de adaptação a novas tecnologias. O Laboratório de Inovação desenvolveu projeto (COMUNIC-AÇÃO) previsto em uma das metas definidas pelo CNJ, voltado para os oficiais de Justiça, que também vão se relacionar com o público externo fazendo uso de linguagem simples, clara e acessível. O projeto já está sendo usado na Vara de Execução Fiscal de Campo Grande.]
Como processo de reaprendizado começou na primeira semana de março, a desembargadora Jaceguara Dantas da Silva, que responde pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJMS, apresentou proposta de Direito Simplificado, reforçando a nova linguagem com desenhos e figuras ilustrativas que podem ser usadas para descomplicar a linguagem jurídica para mulheres vítimas de violência doméstica.
O juridiquês, além de complicar e dificultar a interpretação pelo cidadão comum das decisões da Justiça, contamina toda a cadeia de operação e administração do sistema judiciário. Nem as assessorias de comunicação social e institucional escapam da linguagem eivada de termos técnicos, em obediência aos métodos preservados ao longo do tempo.
Credibilidade
A primeira formação de magistrados em linguagem comum foi conduzida no Tribunal de Justiça do Estado pela juíza Kelly Gaspar Duarte, a professora de jornalismo Rosa Mara Pinheiro (UFMS); a coordenadora operacional do Laboratório de Inovação da Justiça Federal de São Paulo, Elaine Cristina Cestari; e a juíza Joseliza Alessandra Vanzela Turine. O desembargador Alexandre Lima Raslan pediu, na abertura da capacitação, que haja uma reflexão sobre a real necessidade de se perpetuar conceitos e práticas antigas.
A falta de linguagem simples e direta também é considerada como fator de distanciamento do Judiciário da comunidade. De acordo com o TJMS, a ideia é que os magistrados desenvolvam “habilidades essenciais para a elaboração de textos jurídicos mais claros, diretos e acessíveis, o que, por sua vez, garante o acesso à justiça da população em geral e dá mais credibilidade ao Poder Judiciário”.
“Estou no serviço público desde 1995 e ele tem uma tradição de repetir modos de trabalho por repetir. Por que se faz assim? Porque todo mundo faz, muitas vezes é a resposta. Isso é um problema que também tem relação com a linguagem. A linguagem jurídica precisa ser repensada e contextualizada no mundo atual”, diz o desembargador Alexandre Lima Raslan.