A cheia de meio século atrás, depois do mais longo ciclo de seca, mudou completamente o ambiente no bioma, o comportamento hídrico e o processo produtivo da pecuária
Por Silvio de Andrade – Lugares.Eco
“Essa água tomo no tereré…”
Depois de dez anos de seca intensa, quando se atravessava a pé o Rio Paraguai em frente ao porto de Corumbá e já se propagava que o Pantanal se tornaria um deserto – inclusive no meio acadêmico -, a chegada das águas de forma repentina na planície, em 1974, pegou os pantaneiros desprevenidos e a inundação daquele ano foi uma catástrofe. Morreram milhares de cabeças de gado e muitos fazendeiros empobreceram ou abandonaram a pecuária.
Não foi a maior cheia do Pantanal (o nível do Rio Paraguai chegou a 5,46m na régua fluviométrica de Ladário, no dia 5 de junho), porém, a planície se transformou no Mar de Xaraés preconizado no imaginário do explorador espanhol Cabeza de Vaca, no século XVI. A água chegou na velocidade de um tsunami no chão esturricado, atingiu a copa das árvores e sedes de fazendas e levou na correnteza moradores, bovinos e animais selvagens.
Maior município do bioma, com 64 mil km² de território, Corumbá tinha na época o maior rebanho bovino do Brasil: 3.041.364 cabeças, na conta do IBGE. A cheia reduziu esse expressivo volume em 35% (1.062.685) no ano seguinte, por conta da morte de animais e venda a qualquer preço do que se conseguiu salvar nos boieiros (lanchas) da antiga estatal Serviço de Navegação da Bacia do Prata, em direção ao planalto de trem.
Sem água e pasto, uma tristeza
“Depois da grande cheia em 1959, com chuvas intensas seguido de um inverno rigoroso, o gado enfraqueceu e pegou essa seca braba. Não havia água nem para os animais, a gente buscava os minadouros abrindo buracos no braço observando a natureza; o gado comia a casca dos troncos por falta de pasto, era uma tristeza”, conta o pantaneiro Manoel Martins de Almeida, 79 anos. “A notícia se espalhou, mas ninguém acreditou na cheia, se falava que iria tomar essa água no tereré. A gente cruzava o Pantanal de carro sem molhar os pneus.”
Dono da Fazenda São Camilo, no Paiaguás, divisa com Mato Grosso, Martins disse que não teve grandes perdas, pois a enchente foi mais avassaladora nas áreas baixas das sub-regiões do Abobral, Nabileque e Jacadigo, mais a Leste e Sul de Corumbá. “O Pantanal empobreceu, aniquilou a pecuária, reduziu área de criação e produção, foi difícil dominar a situação. Os corixos viraram rios e atoleiros, muita gente ficou ilhada, perdeu tudo”, lembra.
O fazendeiro e piloto Francisco José Boabaid, o Chico, era adolescente (17 anos) quando presenciou a chegada das águas, com o transbordamento do Rio São Lourenço, na fazenda (Boa Vista) da família, também no Paiaguás. “Voltava de um retiro com meu pai e os peões a cavalo e de longe avistamos uma nuvem de poeira. Era a água entrando no campo seco em velocidade impressionante. Retornamos pra sede zingando uma canoa”, conta.
Após o fenômeno, a região teve uma sequência de cheias grandes e normais (4m) até 2000. Na enchente recorde de 1988, o Rio Paraguai alcançou 6,64m. Na época, o rebanho bovino de Corumbá era de 1.241.959 cabeças. Para pesquisadores e pantaneiros, o ecossistema sofreu profundas alterações pós 1974. “Aquela água selecionou, retirou o lixo, surgiu um capim maravilho, mudou a natureza e se estabeleceu em algumas regiões”, observa Manoel Martins.
“Minha geração viveu essa cheia.
Ela não avisou e foi a mais impactante”
( Luiz Otávio Carneiro, pantaneiro, 68 anos)
Recuperação veio com pesquisa e
readaptação do homem e do boi
A cheia de 50 anos, depois do mais longo ciclo de seca – período em que os níveis do Rio Paraguai, em Ladário, oscilaram entre 1,33m e 2,09m, com mínimas negativas de até 0,61cm -, mudou completamente o ambiente no bioma, o comportamento hídrico e o processo produtivo da pecuária, até então empírico. O maior impacto, porém, foi na economia local. Estima-se que o prejuízo dos pantaneiros foi de R$ 2,1 bilhões, no preço atual da vaca de cria.
“Era um período de expansão com a ocupação das áreas ao longo do Rio Paraguai e terras baixas, se discutia projetos de integração com a abertura de estradas até Poconé (MT), que não viabilizaram depois da cheia”, observa o veterinário e zootecnista Urbano Gomes Pinto de Abreu, 63, pesquisador da Embrapa Pantanal. “Mas, o pantaneiro se readaptou, aprendeu a lidar com as duas situações (cheia e seca) e investiu na melhoria do rebanho.”
Arca de Noé
A inundação causada pelo Rio Paraguai e afluentes – “morreu até galinha no poleiro”, segundo os pantaneiros -, foi um divisor de águas. Muitas terras ficaram submersas permanentes, como as áreas de influência do Rio Paraguai próximas a Corumbá, onde se formavam agrovilas e grandes fazendas – hoje corredor de fogo devido ao acúmulo de matéria orgânica. No Jacadigo, o transbordamento do Rio Tucavaca (Bolívia) contribuiu para inviabilizar a atividade pecuária por uma década devido ao solo encharcado.
Os pantaneiros contam que, sem para onde fugir, o gado se refugiava nos capões (áreas elevadas) e o espaço se tornava uma arca de noé, dividido também pelos animais selvagens, como cervo, tatu, porco do mato, capivara, lobinho, tamanduá… O presidente do Sindicato Rural de Corumbá, Gilson de Barros, tinha nove anos e ajudou seu pai e avó a recolher o gado, que era criado solto no campo. “Foi desesperador, a cheia pegou todo mundo de calça curta”, cita.
Recuperação
O pantaneiro Armando Lacerda, 69, relata que o gado foi saqueado com os financiamentos que surgiram para compra, cuja desvalorização perdurou até os anos 80. Sem alternativas, muitos fazendeiros entregaram animais para os frigoríficos sem prazo de pagamento. “Na sequência, tivemos o assoreamento do Rio Taquari, que inundou mais de 1,5 milhão de hectares, onde se produzia 250 mil bezerros por ano”, diz Luciano Aguilar Leite, 49, vice-presidente do Sindicato Rural.
A criação da Embrapa Pantanal, em 1975, contribuiu para recuperar a pecuária, hoje reconhecida por produzir carne sustentável, e Corumbá retomou sua posição: tem o segundo maior rebanho (1,9 milhão de cabeças) do país. “O gado, que na cheia de 74 não conhecia água no campo, se aclimatou, e o pantaneiro apostou na pesquisa e nas novas técnicas, como formação de pastagem, desmame antecipado, melhor manejo e nutrição e maior capacidade de suporte e produtividade”, atesta Urbano Gomes.