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O plástico que falta nas recicladoras sobra na natureza

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Repensar modelos de produção e consumo, banindo descartáveis e criar regulação que incentive a reciclagem pós-consumo são soluções possíveis para a cadeia do plástico no Brasil

Por Elizabeth Oliveira – ((o))eco*

No Brasil, enquanto as recicladoras de plásticos enfrentam cenários de ociosidade de até 40% de sua capacidade instalada, grande quantidade de embalagens e de produtos fabricados a partir desses materiais vai parar em aterros sanitários ou em lixões a céu aberto, além de ser também lançada diretamente nos corpos d’água. Dados da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast) indicam que a produção do setor, em 2022, alcançou 6,7 milhões de toneladas e que a reciclagem foi de 25,6% naquele ano. Ainda que o percentual tenha avançado, nos últimos anos, uma série de deficiências contribui tanto para o descarte inadequado como para a falta de melhor aproveitamento de matéria prima reciclável nessa cadeia produtiva.

Uma ilustração da gravidade do problema é sinalizada por estimativas do relatório Um Oceano Livre de Plástico, da organização ambientalista Oceana Brasil. Segundo essa publicação, 325 mil toneladas de materiais plásticos são lançadas anualmente nas praias e no Oceano Atlântico, ameaçando a biodiversidade marinha e a própria saúde humana no país. Não por acaso, mais de 70 entidades e cientistas brasileiros assinaram um manifesto, dirigido à Casa Civil da Presidência da República e a vários ministérios, cobrando uma postura firme do governo brasileiro nas negociações que se desenrolaram de 23 a 29 de abril, em Ottawa, Canadá, onde representações diplomáticas e outros atores sociais estiveram discutindo as bases para o Tratado Global contra a Poluição Plástica, demanda internacional considerada urgente.

No Brasil, até mesmo o PET, um dos tipos de plásticos mais consumidos e reciclados no país, por isso mesmo o mais valorizado nessa cadeia produtiva, poderia ser muito melhor aproveitado como matéria-prima. O nível de ociosidade das empresas recicladoras desse material varia entre 30% e 40%. As fabricantes desse segmento de mercado no Brasil têm uma capacidade instalada para produzir anualmente 1 milhão de toneladas de resina virgem, enquanto o seu índice de reciclagem alcançou 56,4% das embalagens pós-consumo, em 2021, o que representou um crescimento de 15,4% em relação a 2019, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de PET (Abipet), no último censo realizado e divulgado em 2022.

Auri Marçon, presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria do PET (Abipet), argumenta que, embora o PET não tenha gargalos tecnológicos para ser reciclado, esse é um dos grandes problemas de outros tipos de plásticos que, somados a esse fator, podem enfrentar baixa demanda mercadológica, além de limitação de capacidade industrial instalada e de coleta seletiva nos municípios brasileiros. Para a superação desses dilemas,  ele opina que alguns fatores podem atuar como impulsionadores de mudanças, dentre os quais, exigências regulatórias, processos de governança de grandes fabricantes e consumidoras de materiais plásticos, além de cobranças da sociedade.

No caso específico do PET reciclado, Marçon afirma que o principal gargalo se refere à limitação de separação na fonte, tendo em vista a baixa cobertura de coleta seletiva no país, levando as empresas recicladoras a níveis de ociosidade considerados preocupantes. “Muitas empresas investiram alto e hoje não têm oferta de matéria prima”, observa. Apesar dos percalços, essa cadeia produtiva mostra que ainda tem força econômica. Com 46 empresas de reciclagem de PET associadas à Abipet, além de mais de 120 que utilizam PET reciclado em seus produtos, esse é um segmento de mercado com faturamento de R$3,5 bilhões anuais, dos quais R$ 1,5 bilhão envolve sucateiros e catadores. No entanto, no que se refere especificamente aos catadores, não se pode desconsiderar que seus ganhos são cada vez mais reduzidos, como ilustrado nesta reportagem.

Mas como todos os demais materiais recicláveis são commodities precificadas em dólar internacionalmente, o setor enfrenta também a sua crise, ditada pela dinâmica da chamada lei da oferta e da demanda que move a economia global. Assim como ocorreu com o papel e o papelão, tema de reportagem publicada pelo ((o))eco em março, os preços dos recicláveis de plástico despencaram no pós-pandemia da Covid-19, após terem alcançado níveis históricos de valorização durante a crise sanitária, quando as empresas mundo afora fizeram altos estoques devido à falta de matéria prima.

Historicamente, Marçon ressalta que o PET “não nasceu para a garrafa”, a forma como se popularizou mundialmente. Foi criado para a indústria têxtil, onde somado ao algodão passou a compor, principalmente, a produção de vestuário, além de edredons, mantas e outras peças. Anualmente, 24% desse material reciclado têm como destino esse segmento. Mas observando suas características próprias, como a alta capacidade de proteção das embalagens de bebidas, tornou-se o preferido desse segmento de mercado para embalar água, sucos, refrigerantes, óleos e outros produtos como materiais de limpeza e cosméticos.

Mas a sua aplicabilidade é considerada tão versátil que, como exemplificado por ele, no segmento automotivo já é 100% destinado pelas montadoras para forrações dos automóveis. Além de ser utilizado pelas indústrias de tintas, materiais escolares, óculos de segurança, móveis e utensílios domésticos, quando misturado à fibra de vidro resulta em piscinas, entre tantas outras formas de aproveitamento como matéria prima. “Tudo é possível se fazer com o PET reciclado”, adianta. No caso da volta à cadeia alimentícia, essa alternativa de reciclabilidade se tornou possível, há mais de uma década, pela tecnologia conhecida como bottle-to-bottle (de garrafa a garrafa), o que representou a possibilidade de fechar o seu ciclo de vida. Pelo último censo da Abipet, 29% das embalagens de PET reciclado voltaram a ser garrafas.

O presidente da instituição ressalta, ainda, o papel fundamental dos serviços prestados pelos catadores de materiais recicláveis. “São eles que sustentam a indústria de reciclagem no Brasil”. Mas para ele, somente esse apoio não será capaz de expandir a reciclagem de plástico e outros materiais, processo que, segundo opina, depende de ajustes em carga tributária, fiscalização da implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) para todos os segmentos sociais e ações de educação ambiental. “O Brasil pode ser forte na indústria de reciclagem”, conclui.

Do luxo ao lixo, como o consumo de plástico se expandiu

No início do século passado, somente a população mais rica tinha acesso a produtos plásticos. No Brasil, as matérias primas do plástico daquela época eram de origem natural, como a borracha extraída das seringueiras da Amazônia. Como observa o engenheiro metalúrgico Carlos Alberto Mendes de Moraes, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), na era da sociedade do consumo, não haveria floresta capaz de suprir tal demanda que só cresceu, desde então, possibilitada pelas alternativas derivadas de petróleo, cujos impactos ambientais ainda estão longe de serem resolvidos pelas empresas, pelo poder público e outros atores sociais. Assim, o que um dia já foi luxo, se tornou, majoritariamente, um tipo de lixo que preocupa pelo seu alcance global na natureza, sobretudo, em cenários de agravamento da perda de biodiversidade e da crise climática.

Ele recorda que o avanço da produção do plástico foi se consolidando a partir da década de 1950, possibilitando, gradativamente, que esse tipo de material se tornasse um dos mais consumidos mundialmente. Barateado pela produção em larga escala, o plástico foi transformado em uma espécie de “mal necessário”, como avalia.

Porém, para substituir aço e alumínio, materiais mais usados no passado, a grande quantidade de plástico produzida passou a esbarrar em um problema: o uso de aditivos para garantir o aumento da sua resistência, como explica Moraes. Esse é o caso do filme plástico. Largamente utilizado nos últimos anos, para proteger alimentos da umidade, é cada vez mais associado a riscos à saúde humana, além de ser impactante para a natureza e de baixo índice de reciclabilidade. “Tudo isso torna os plásticos cada vez mais complexos e a sua reciclabilidade também. No caso das latinhas de alumínio, quase 100% do que se produz volta a ser latinha de novo. Com o plástico não é assim”, acrescenta o professor.

Moraes também apresenta críticas ao processo de rotulagem de produtos no Brasil. O plástico laminado, por exemplo, fortemente utilizado para embalagens de chocolates, biscoitos e outros alimentos, é considerado um material composto de difícil reciclagem. Com isso, esses e outros, carregados de aditivos, chegam às cooperativas de catadores, mas não se prestam à reciclagem e são descartados para os aterros sanitários. Nesta reportagem, uma liderança comunitária narra problemas desse tipo na cooperativa que preside em Porto Alegre.

Apesar do alto consumo e descarte indevido na natureza empresas recicladoras de plástico ainda enfrentam ociosidade no Brasil. Crédito: CRB/Divulgação.
O professor também chama atenção para o avanço da presença do microplástico nas águas de rios, lagos e mares do Brasil e do mundo. Ele alerta, como exemplo, que casacos de poliéster não foram feitos para ser lavados em máquinas. Mas a comodidade que esse tipo de lavagem promove no cotidiano doméstico acaba transformando resíduos dessa fibra em microplástico que está afetando a biodiversidade marinha, a cadeia alimentar e alcançando a saúde humana já que o material continua se quebrando em minúsculas partículas em contato com a natureza. Não por acaso, microplásticos já foram encontrados em partes do corpo humano, até mesmo na placenta e no coração, além de atingir distâncias cada vez mais profundas nos oceanos.

Diante da expansão do consumo de plásticos, como os de uso único, e da falta de solução para a correta destinação desse tipo de material nas cidades, Moraes defende que é preciso rever processos produtivos a fim de evitar cada vez mais o seu contato com os alimentos e o corpo humano, além de contaminar o ambiente. Ele menciona, por exemplo, que também considera “um crime” o uso de plástico para o aquecimento de alimentos no forno de microondas. Além dos riscos em potencial para a saúde, por mais que os fabricantes digam o contrário, esses utensílios com resíduos de gordura não têm valor para a reciclagem.

Da mesma forma, o professor afirma seu posicionamento contrário ao controverso processo de incineração de resíduos sólidos, alternativa já defendida por muitas prefeituras pelo Brasil afora, como forma de facilitar a gestão de lixo urbano. No caso dos plásticos, ele alerta que existem mais de 60 mil tipos de polipropileno, composto químico central dessa indústria. Diante disso, afirma que não se pode garantir que não haverá riscos ambientais e para a saúde pública nesses processos. “Isso é para facilitar a vida do poder público e reduzir a responsabilidade de coleta e triagem, além de favorecer interesses econômicos”, opina. “Quando o poder público opta pela incineração está sinalizando para a sociedade que está lavando as mãos diante do problema da gestão de  resíduos”, acrescenta o especialista que integra a Frente Nacional Contra Incineração, movimento que tem se fortalecido na luta contra esse tipo de tecnologia no Brasil, já considerada ultrapassada e abandonada por países desenvolvidos como a Alemanha.

Para ele, em vez de investir nessa alternativa, é preciso readequar a produção industrial, fortalecer as ações de coleta seletiva nas cidades, destinando materiais plásticos recicláveis para as cooperativas de catadores, e fortalecendo, assim, uma cadeia produtiva formada por muitos elos.

Empresário acredita em mudança de cenário e quer investir mais em reciclagem de plástico

lásticos recicláveis no estoque da CRB em Belo Horizonte, empresa enfrenta dificuldades mas espera retomada da cadeia. Crédito: CRB/Divulgação

Muitas das questões apresentadas até aqui também são mencionadas por João Paulo Sanfins, diretor da CRB (Comércio de Resíduos Bandeirantes), recicladora instalada em Belo Horizonte há 50 anos. Como vice-presidente da Associação Nacional dos Aparistas de Papel (Anap), composta por 55 associadas, ele foi ouvido em reportagem publicada pelo ((o))eco, em março, sobre a crise na reciclagem de papéis. Nessa instituição, 94% das associadas trabalham com a gestão da reciclagem de plástico e estão enfrentando prejuízos causados pela ociosidade que afeta o setor. “Observamos muitos gastos em marketing, mais do que em ações concretas pela sustentabilidade”, opina criticamente sobre o uso do discurso de sustentabilidade que não se reflete em ações empresariais práticas pela chamada economia verde.

Como parte das soluções para os problemas enfrentados, ele defende mudanças técnicas envolvendo o design de embalagens, a fim de garantir a circularidade, além da reestruturação da cadeia de catadores, recicladores e outros elos, a partir do fortalecimento da logística reversa. “Grandes empresas já estão pensando na questão do design para a circularidade, considerando embalagens que têm, por exemplo, várias camadas formadas por tipos de plásticos diferentes que dificultam a reciclagem”, observa.

Por outro lado, ele opina que para haver algum nível de equilíbrio econômico dos recicladores no Brasil, o ideal seria que o preço do plástico reciclável (entre R$ 7,00 e R$ 8,00, por quilo) fosse equiparado ao das resinas de plástico virgem (cerca de R$ 11,00, o quilo) e que as empresas estivessem mais inclinadas a escolher a primeira opção para que a questão ambiental também fosse levada a um patamar de prioridade.

Como se não bastasse a alta carga tributária enfrentada pelos recicladores, ele menciona que outra grande dificuldade envolvendo essa questão específica, se refere a uma grande oferta de resina virgem que a China fez ao mercado, globalmente, no pós-pandemia, o que causou perdas econômicas ao setor de reciclagem, mundo afora, não sendo diferente no Brasil.

Além disso, ele explica que a Zona Franca de Manaus também provoca desequilíbrio na cadeia do plástico brasileira por produzir embalagens com resina de petroquímicas chinesas, a custo mais baixo e ainda com incentivos fiscais.

Apesar dos percalços, ele destaca que está para ser publicado, este ano, um decreto de incentivo à reciclagem de plástico no Brasil, o que tende a contribuir para que haja um fortalecimento dessa cadeia, após período de grandes prejuízos. Confiante na retomada do setor, o empresário informa que investiu em um maquinário importado de última geração que poderá dobrar a produção de plástico reciclado da sua empresa, passando, ainda este ano, de 400 para 800 toneladas mensais. “Se sair realmente esse decreto, pretendemos também abrir mais fábricas no Brasil”, adianta.

Somado a esse tipo de reforço decorrente de uma regulação mais exigente, ele defende carga tributária diferenciada para a cadeia da reciclagem, além de linhas de crédito e estímulo ao desenvolvimento e inovação das empresas do setor.

Arte: Gabriela Güllich

Aliança internacional defende reflexão sobre produção, consumo e impactos ambientais

Para o engenheiro químico Rafael Eudes Ferreira, já passou da hora de se fazer uma reflexão global sobre o papel dos plásticos na vida cotidiana e o seu descarte indevido na natureza, sobretudo, nos oceanos. Como membro do comitê da Aliança Resíduo Zero Brasil e embaixador no Brasil do movimento Break Free from Plastic, ele defende a necessidade de um amplo questionamento sobre processos de produção e consumo de plásticos que estão causando impactos de longo alcance globalmente, não sendo diferente no nosso país. Parte dessa discussão está sendo desencadeada por esses movimentos da sociedade civil organizada que buscam enfrentar o desperdício e promover uma cultura de circularidade. A Aliança, por exemplo, tem como eixos centrais da sua atuação a reciclagem de resíduos orgânicos, o banimento de plásticos descartáveis, a responsabilização do setor produtivo e a reciclagem solidária com os catadores.

“Temos uma alta disponibilidade de matéria prima virgem e a cada dia mais estudos apontam na direção da insustentabilidade dos padrões de produção e consumo atuais. Precisamos discutir sobre como a própria indústria enxerga a sua atuação”, analisa o especialista. Para ele, outra questão central no debate dessa temática, envolve a situação dos catadores. “Eles não podem ficar reféns dos altos e baixos da reciclagem”, opina, ao defender que esse elo da cadeia seja remunerado pelos serviços ambientais prestados à sociedade.

Ferreira concorda que é preciso também repensar sobre design dos produtos, além de abordar seus usos essenciais. “Acredito que a sociedade está ciente dos impactos dos plásticos na natureza”, observa ao mencionar uma pesquisa recente da organização ambientalista WWF que ouviu 24 mil pessoas, em 32 países, e apresentou a preocupação dos entrevistados sobre essa questão em nível global, incluindo o Brasil. Esse levantamento indicou que 85% dos entrevistados querem a proibição de plásticos descartáveis. Mas, ao mesmo tempo, ele reflete que, infelizmente, o debate sobre consumo consciente ainda é marcado por privilégios ou a falta deles nas diferentes camadas sociais brasileiras.

Como soluções para o enfrentamento dos dilemas, o especialista defende que os consumidores devem se preocupar em eleger governantes que implementem soluções para o enfrentamento dos impactos dos plásticos na natureza e que as empresas sejam responsabilizadas em relação à logística reversa dos seus produtos, de forma a garantir o fortalecimento de processos de circularidade. Com isso, podem gerar novas oportunidades socioeconômicas para além da reciclagem. Nesse sentido, ele menciona uma pesquisa da Fundação Ellen Macarthur  que sinaliza para a geração de negócios da ordem de US$ 10 bilhões envolvendo a reutilização de 20% das embalagens plásticas pós-consumo.

Catadores perdem ganhos em Porto Alegre, cidade pioneira na gestão de resíduos

Paula Medeiros, presidente da Cooperativa de Trabalhadores de Reciclagem da Vila Pinto, conta que quando as atividades dessa organização gaúcha foram iniciadas de forma pioneira em Porto Alegre, há 27 anos, existiam, em média, cinco tipos de materiais recicláveis. Atualmente, variam de 25 a 30. Tudo isso tornou o processo de triagem cada vez mais complexo, ao passo que ainda não se consolidou a desejada valorização de uma atividade que presta inestimáveis serviços ambientais e socioeconômicos à sociedade.

Sinais de desânimo quanto à falta de valorização desse elo da cadeia de reciclagem se refletem nos números dos associados. Há mais de duas décadas eram cerca de 250 pessoas, quando a alta demanda exigia que se revezassem 24 horas por dia. Atualmente, são 35 pessoas que atuam em jornadas diárias de oito horas. A organização só não se enfraqueceu totalmente pois, por demanda comunitária, investiu em várias frentes de atuação no espaço físico que foi se ampliando para dar lugar a projetos de assistência social e educação infantil, entre outros, que a tornaram referência em Porto Alegre.

Cooperativa pioneira em Porto Alegre tem menos associados e ganhos reduzidos após 27 anos de serviços prestados à gestão ambiental da capital gaucha. Crédito: Centro de Educação Ambiental (CEA). Foto: Divulgação.
Mas a capital gaúcha, por sua vez, do passado de referência em engajamento ambiental, passa por grandes transformações, incluindo a redução da quantidade de catadores. De cerca de 600, atualmente são em torno de 400. Paula reitera que não há retorno financeiro para essa profissão insalubre que vem sendo trocada por outras. Além disso, a atividade ainda corre mais risco diante do interesse da Prefeitura de privatizar o serviço de gerenciamento de resíduos sólidos da cidade (da coleta seletiva e outros serviços ao destino final), podendo afetar, mais ainda, as atividades de triagem realizadas pelas 17 cooperativas de reciclagem. “Corre-se o risco de ter funcionário que não entende o que vem a ser esse serviço de triagem. A sociedade precisa debater essa questão preocupante para uma cidade que sempre teve papel pioneiro na agenda ambiental no Brasil e no movimento de catadores”, alerta.

Para Paula, dentre outros dilemas, “a reciclagem de resíduos se tornou uma moeda de troca e não somente renda para os catadores”. “Passamos a concorrer com hipermercados, empresas, órgãos públicos e tantos outros segmentos que passaram a vender seus recicláveis. Dessa forma, grande parte do material nobre não chega mais para nós”, observa.

A Cooperativa que já chegou a receber, em média, 130 toneladas de recicláveis por mês, das quais aproximadamente 70 eram comercializadas, recebe atualmente cerca de 60 toneladas. Desse total, Paula relata que consegue comercializar de 42 a 45 toneladas. O restante é rejeito não reciclável, a maioria formada por plásticos (incluindo os de uso único), que depois de separado é destinado ao aterro sanitário da cidade. Diante desse cenário, cada associado não consegue mais receber nem um salário mínimo. Os ganhos mensais estão em torno de R$ 700,00. Nesse contexto, o plástico mais valioso é o PET transparente que custa R$ 2,80 o quilo.

Para a presidente da Cooperativa, diante do atual cenário em que a cadeia da reciclagem perde a força econômica, enquanto grandes volumes de plástico se acumulam nos lagos, rios, mares e oceanos, é preciso cobrar mais responsabilidade dos fabricantes. “É preciso garantir que não vão mais sair das fábricas tipos de plástico que não são recicláveis. Enquanto houver, as pessoas vão consumir”, opina. Ela conclui que essa questão também precisa gerar penalidade.

As críticas de Paula encontram ressonância em dados científicos que discutem a responsabilidade das empresas quanto às suas embalagens pós-consumo. Um artigo publicado pela revista Science Advances, em abril,  identificou que cerca de 910 mil itens plásticos identificáveis, pesquisados entre os anos de 2018 e 2022, após serem recolhidos em 84 países, foram fabricados por 56 empresas multinacionais. No entanto, um quarto desse total foi distribuído por cinco grandes corporações de atuação global (Coca-Cola, PepsiCo, Nestlé, Danone e Altria/Philip Morris International).

Contaminação impede que plásticos recolhidos em ecobarreira sejam reciclados 

Foto: Divulgação/Amadarcy.

Imprestáveis para a reciclagem devido à contaminação por esgoto e outros poluentes encontrados no rio João Mendes, principal afluente da Lagoa de Itaipu, em Niterói, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Essa é a realidade dos resíduos retirados da ecobarreira instalada pela organização ambientalista Amadarcy (Instituto Floresta Darcy Ribeiro) em 2022, a maioria formada por embalagens e utensílios plásticos. Desde então, 11 toneladas já foram recolhidas, mas tiveram como destino o aterro sanitário municipal, em vez de serem recicladas. Todo o material é quantificado e qualificado.

“A nossa ideia inicial era essa, de destinar os resíduos coletados à reciclagem, mas quando procuramos a Companhia Municipal de Limpeza Urbana de Niterói (Clin), fomos informados de que não seria sustentável reciclar aquele tipo de resíduo, pois demandaria muita água e produtos para higienizá-los. Nesse caso, a solução seria a destinação para o aterro municipal e assim tem sido feito”, afirma o ambientalista Felipe Queiroz, diretor-coordenador da Amadarcy. Para ele, uma solução viável nesse caso, seria lavar esses materiais com água de reúso, caso as estações de tratamento de esgoto da cidade tivessem essa alternativa.

“Dessa forma a gente se sente como se estivesse enxugando gelo. É muito desanimador porque todo o nosso trabalho é voluntário. Mas apostamos na missão de fortalecer ações de educação ambiental e despertar nas novas gerações o interesse pela proteção da natureza”, observa o ambientalista, que trabalha fazendo ações de engajamento em escolas e recebendo estudantes para conhecer o trabalho da ecobarreira. Os alunos também são levados a fazer trilhas em unidades de conservação como o Parque Estadual Serra da Tiririca e a Reserva Extrativista Marinha de Itaipu. Oficinas, peças teatrais e outras estratégias pedagógicas lúdicas também são utilizadas para sensibilizar os participantes sobre a temática que se quer despertar na juventude e que envolve os impactos envolvidos nos processos de produção e consumo.

Paralelo a isso, o projeto já fez levantamento de peixes dessa área de atuação, além de projeto de restauração de mata ciliar do rio João Mendes que nasce na Serra da Tiririca e percorre seis quilômetros, sendo afetado pela poluição urbana nesse percurso. “Se houvesse mata em ambos os lados esse lixo seria barrado pela vegetação”, conclui.

Nos próximos passos do trabalho, o ambientalista informa que haverá análise de microplástico presente no rio, como parte de ações de um projeto de pesquisa recém aprovado pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). “Esses dados vão servir para cobranças da sociedade e orientar processos de tomada de decisão sobre essa questão da poluição causada por plásticos e outros materiais que poderiam ser reaproveitados na cadeia produtiva”, conclui Queiroz.

Arte: Gabriela Güllich

MMA confirma que decreto de incentivo a reciclagem sairá nos próximos meses

Em resposta aos questionamentos da reportagem sobre o andamento da elaboração de decreto para incentivo à reciclagem de plástico, o MMA afirma que o documento será assinado nos próximos meses e que a sua construção tem ocorrido de forma participativa. Além disso, apresenta iniciativas em curso para impulsionar economicamente essa cadeia produtiva bem como ressalta o planejamento de ações de educação e inclusão social. Nesse sentido, responde a várias demandas das vozes ouvidas nesta produção jornalística.

((o))eco – Sobre o decreto de estímulo à reciclagem de plásticos, aguardado ansiosamente por essa cadeia produtiva, como tem sido o processo de elaboração desse documento?

MMA – A minuta de decreto já passou por consulta pública na plataforma Participa+ Brasil, em que recebeu 3.475 contribuições. Posteriormente, houve também webinar para discussão do decreto, já incorporando pontos levantados na consulta pública e discutidos no Tratado Internacional de Combate à Poluição por Plásticos. O MMA também recebeu contribuições da sociedade civil, do setor privado e de outros órgãos do governo.

Haverá outra rodada de discussão em 17 de maio sobre possíveis encaminhamentos do Tratado Internacional de Combate à Poluição por Plásticos e outros pontos do debate global que impactam as legislações brasileiras e a minuta do Decreto de Logística Reversa de Embalagens Plásticas. A previsão é que o decreto seja publicado nos próximos meses.

Que iniciativas, além do decreto, têm sido tomadas no âmbito do MMA para estimular a reciclagem de plásticos, tendo em vista os altos impactos desses materiais na natureza?

MMA e MDIC [Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços ] constroem, dentro do Plano de Transformação Ecológica liderado pelo Ministério da Fazenda, a Estratégia Nacional de Economia Circular. A iniciativa inclui políticas de estímulo a inovações na produção, como ecodesign, remanufatura, recondicionamento e reuso. Permitirá também maior integração para a conscientização ambiental e a resolução de distorções tributárias que inibem o reuso e a reciclagem pós-consumo. Prevê também a criação de novas linhas de financiamento, como a recém-lançada linha do Fundo Clima de incentivo à reciclagem. Com o Ministério da Fazenda, o MMA também participa da regulamentação da reforma tributária para ajustes fiscais que permitam que a matéria-prima reciclada seja competitiva com a matéria prima virgem.

Há outras ações em curso com esse objetivo?

Outra ação é a regulamentação da Lei de Incentivo à Reciclagem, que permite a dedução de imposto de renda para quem investir em projetos de reciclagem, capacitação, educação ambiental, entre outros. A expectativa é que a legislação seja regulamentada nos próximos meses. O MMA trabalha ainda para ampliar a transparência e compliance da logística reversa por empresas, com algumas portarias já publicadas e outras que serão publicadas nas próximas semanas.

O Ministério também publicou portaria para permitir cadastro de cooperativas e associações de catadores no Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos (Sinir), o que permitirá ações e programas para o pagamento por serviços ambientais. Possibilitará também iniciativas coordenadas com outros ministérios para valorização, capacitação e ampliação da atuação de cooperativas e associações de catadores junto ao Comitê Interministerial de Inclusão Socioeconômica de Materiais Recicláveis (CIISC).

Quanto às discussões do Tratado Global de Combate à Poluição por Plásticos, no Canadá, qual foi a participação do MMA e seu engajamento nesse debate internacional, além de suas repercussões no país?  

Representantes do MMA e do Ibama integraram a delegação brasileira nas discussões em Ottawa. Para implementação do tratado, foi construída parceria com rede de cientistas para contribuir nas definições sobre químicos de preocupação, polímeros problemáticos, polímeros evitáveis, plásticos de uso único e propostas de implementação do tratado. Também foi aprovada proposta do Brasil para a criação de grupo interseccional para debater financiamentos, recursos e meio de implementação para acabar com a poluição existente e a expansão da reciclagem e da economia circular.

O Brasil também constrói a Estratégia Nacional de Economia Circular e um sistema de rastreabilidade para produtos reciclados, incluindo a rastreabilidade do material reciclado a ser obrigatoriamente incluído na produção de novos produtos. Os temas foram bem recebidos e inseridos nos debates do tratado global.

O país promoveu ainda debate paralelo sobre catadoras e catadores de materiais reciclados com representantes do setor de vários países. A iniciativa permitiu discussão mais ampla sobre transição justa, inserção de catadores na economia circular e novos instrumentos para ampliar e financiar a reciclagem pelo mundo.

(*) Elizabeth Oliveira é jornalista e pesquisadora especializada em temas socioambientais, com grande interesse na relação entre sociedade e natureza. 

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