Porta-voz dos estados, governador de Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel, prega pacificação entre fazendeiros e indígenas e segurança jurídica no campo
Por Agência 24h*
O governador Eduardo Riedel participou nesta segunda-feira (5) da primeira reunião da Comissão Especial do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o marco temporal. Como representante do Fórum Nacional dos Governadores, ele destacou que o objetivo é buscar a pacificação nos estados e segurança jurídica no campo. O prazo para a Comissão concluir os trabalhos é de quase cinco meses.
“O objetivo é buscar uma alternativa para uma solução que é extremamente complexa, haja vista a dimensão de todos os conflitos e discussões que deságuam no Judiciário. Estou aqui representando o Fórum dos Governadores, o que só aumenta a responsabilidade. A intenção é buscar uma pacificação e segurança jurídica”, afirmou o governador.
Riedel ressaltou que além de uma solução para esta questão (marco temporal), também devem ser discutidas políticas públicas efetivas para as comunidades indígenas. “Promovemos diálogo constante no nosso Estado e estamos no esforço de oferecer o básico como a água, que em muitas comunidades não têm. Esta é uma voz corrente também dos governadores, para mitigar um pouco do sofrimento que existe em diversas comunidades”, acrescentou.
O governador do Mato Grosso do Sul foi escolhido pelo Fórum (Governadores) para ser o representante titular dos entes federativos na Comissão Especial criada pelo STF. “Venho aqui parabenizar esta iniciativa e estarei presente sempre que possível, para avançarmos naquilo que sem dúvida é uma necessidade do Brasil”.
Primeira reunião
A primeira reunião da Comissão Especial foi realizada de forma híbrida (presencial e virtual), na sala da Segunda Turma do STF, em Brasília. A previsão é de que os trabalhos estejam concluídos até 18 de dezembro deste ano.
O grupo de trabalho tem a participação de representantes de diversos setores da sociedade. A comissão de conciliação foi designada pelo ministro do Supremo, Gilmar Mendes. Ela é formada por seis representantes indicados pela Articulação dos Povos Indígenas (Apib), seis pelo Congresso Nacional, quatro pelo governo federal, dois dos estados e um dos municípios.
Segundo a tese do marco temporal, os povos indígenas teriam direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Em setembro de 2023, o STF decidiu que a data não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra pelas comunidades indígenas.
Em dezembro, antes de a decisão do STF ser publicada, o Congresso Nacional editou a Lei 14.701/2023 e restabeleceu o marco temporal. Por esta razão foram apresentadas quatro ações questionando a validade da lei e uma pedindo que o STF declare sua constitucionalidade. A Comissão Especial ficará responsável por buscar uma conciliação sobre o tema.
A audiência foi convocada pelo ministro Gilmar Mendes, relator das ações protocoladas pelos partidos PL, PP e Republicanos para manter a validade do projeto de lei que reconheceu o marco e de processos nos quais entidades que representam os indígenas e partidos governistas contestam a constitucionalidade da tese.
Além de levar o caso para conciliação, Gilmar Mendes negou pedido de entidades para suspender a deliberação do Congresso que validou o marco, decisão que desagradou aos indígenas.
Direitos Humanos
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) na área de conflito. O diálogo entre indígenas e produtores rurais que vivem na região é intermediado pela Coordenação-Geral do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), com apoio de representantes da equipe regional do Programa.
Providências
Por meio da atuação do PPDDH no local, foram disponibilizadas, nesta segunda-feira (5), água potável aos indígenas. Encontros presenciais de articulação com órgãos do sistema de justiça, no MS, para acompanhar a situação também integram a mobilização do Ministério.
Pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, chegaram denúncias de violações de direitos, as quais foram encaminhadas ao Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União.
Para controlar os conflitos, foram destacadas, pelo menos, sete equipes da Força Nacional de Segurança Pública. A estratégia é garantir proteção das pessoas atingidas e assegurar que os direitos humanos dos povos indígenas não sejam violados.
Sala de Situação
A pasta de Direitos Humanos e Cidadania integra a Sala de Situação permanente montada pelo Governo Federal em resposta aos ataques. O grupo conta com atuação integrada do Ministério dos Povos Indígenas, da Fundação dos Povos Indígenas (FUNAI) e do Ministério da Justiça e Segurança Pública, entre outros.
Uma rede de alerta também atua junto a movimentos da sociedade civil e órgãos como a Defensoria Pública da União (DPU), o Ministério público Federal (MPF) e a Defensoria Pública estadual. O objetivo é prevenir e reprimir os ataques às comunidades indígenas, no Mato Grosso do Sul.
Entenda o caso
Os conflitos tiveram início em julho, após indígenas Guarani-Kaiowá retomarem territórios tradicionais em Douradina e Caarapó. Os territórios indígenas Panambi-Lagoa Rica e Amambaipeguá I, localizadas nesses municípios, passam por processos de demarcação que aguardam solução judicial.
Segundo informado pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI), os ataques acontecem em território delimitado pela FUNAI em 2011. Ainda de acordo com o MPI, a Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023) e a PEC 48 aumentam a insegurança jurídica sobre territórios indígenas e têm causado instabilidade nas regiões e fomentado a violência contra as comunidades.
Funai aponta inconstitucionalidade
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) já solicitou ao STF o reconhecimento da inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Lei 14.701/2023 que contrariam o texto constitucional. Para a Funai, tais dispositivos não apenas consolidam a violação de direitos dos povos indígenas, como também dificultam a implementação da política indigenista.
- “Os povos indígenas são guardiões da floresta. Várias terras demarcadas são verdadeiros cinturões de proteção ambiental em locais que são completamente degradados” – Joenia Wapichana, presidenta da Funai
Entre as disposições prejudiciais para a política indigenista, em especial para a política territorial, está a tese do marco temporal, a vedação à revisão de limites de terras indígenas e a fragilização do direito de consulta aos povos indígenas, além de questões procedimentais para a demarcação de terras.
“A sociedade precisa tomar conhecimento do histórico de violações de direitos dos povos indígenas. Quantos povos não foram dizimados por disputa de terras ou expulsos das áreas que tradicionalmente ocupavam sem poder se defender à altura em ações judiciais que retiraram o seu direito à política territorial?”, critica a presidenta da Funai, Joenia Wapichana.
Para Joenia, a demarcação de terras não apenas garante o direito dos povos indígenas, como também contribui para a conservação ambiental em razão das suas práticas ecológicas e tradicionais.
“As terras indígenas são as áreas mais protegidas em relação à degradação ambiental no Brasil. Os povos indígenas são guardiões da floresta. Várias terras demarcadas são verdadeiros cinturões de proteção ambiental em locais que são completamente degradados”, ressalta Joenia Wapichana.
Confira a seguir alguns esclarecimentos a respeito do tema:
Quais são as principais alterações trazidas pela Lei 14.701/2023 que prejudicam a atuação da Funai?
A Lei 14.701 traz a previsão da teoria do Marco Temporal, no artigo 4º, a qual estabelece que os povos indígenas tinham que estar habitando determinados locais em 5 de outubro de 1988 para que seja possível realizar a demarcação de terra indígena de ocupação tradicional. Esse ponto contraria a decisão do Supremo Tribunal Federal, no Tema 1031 com repercussão geral, julgado em setembro de 2023.
A principal política territorial da Funai é a demarcação de terras indígena de ocupação tradicional. Quando a lei traz o requisito de que os indígenas estivessem no local reivindicado, desconsidera-se que no curso da história houve várias remoções forçadas de povos indígenas de seus locais de ocupação tradicional.
A Lei 14.701/2023 ressalva a possibilidade de demarcação se houver renitente esbulho, entendido como conflito físico ou demanda judicial em curso em 1988. A Funai questiona essa exigência perante o Supremo Tribunal Federal, pois antes de 1988, em geral, os indígenas não tinham a capacidade civil plena, não podendo ajuizar ações na justiça sem assistência da Funai.
A Funai também questiona perante o Supremo Tribunal Federal a desconsideração de situações fáticas, como casos nos quais os povos indígenas foram expulsos das áreas de ocupação tradicional e não tiveram meios físicos ou jurídicos de recorrer contra essa expulsão, o que acaba consolidando uma violação de direitos.
Outro ponto da Lei nº 14.701/2023 que está sendo questionado perante o Supremo Tribunal Federal é o disposto no artigo 13: vedação à revisão de limites de terras indígenas. O termo vedação de ampliação de terras indígenas não é tecnicamente adequado porque a Funai não aumenta terra indígena, mas realiza a revisão de limites de área já existente.
Antes de 1988, a Funai e o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) realizaram vários procedimentos de demarcação de constituição de reservas, de parques ou de outras áreas indígenas, sem seguir um parâmetro mínimo que respeitasse a territorialidade dos povos indígenas, a cultura deles e o seu modo de vida.
Com isso, durante muito tempo, vigorou uma política de confinamento, que era a demarcação de pequenos espaços, sejam eles de habitação ou de produção, para liberar espaços para expansão agrícola e exploração econômica das áreas de ocupação tradicional.
Como, historicamente, essa política de confinamento foi o que inspirou a demarcação de terras indígenas antes da Constituição de 1988, a Funai tem muitas demandas para a revisão de limites, não para aumentar terra indígena, mas para declarar adequadamente os limites. Isto para não deixar que o ordenamento jurídico, o Estado, corrobore violações cometidas na época da política de confinamento.
Essa revisão de limites se presta para isso, para a declaração dos limites reais da terra indígena respeitando os parâmetros da Constituição de 1988, que são os quatro elementos de tradicionalidade: áreas de habitação permanente, áreas necessárias para reprodução física e cultural, áreas culturalmente relevantes para os povos indígenas e áreas necessárias para a preservação do meio ambiente. E esses elementos, em muitos casos, não foram respeitados. Esse é outro ponto que o Supremo Tribunal Federal considerou viável em algumas hipóteses fazer essa revisão de limites.
Há, também, em algumas disposições da Lei 14.701, uma fragilização do direito de consulta aos povos indígenas. Esses direitos estão estabelecidos tanto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), como na interpretação do artigo 231 da Constituição Federal. A Corte Interamericana dos Direitos Humanos também diz que a Declaração Americana dos Direitos dos Humanos traz o direito de consulta. E quando a lei traz algumas hipóteses de que os povos indígenas não precisam ser consultados, como é o caso do artigo 20, isso acaba criando insegurança.
A lei traz também requisitos excessivos para fazer o procedimento de demarcação de terras indígenas. O Supremo Tribunal Federal já tinha decidido em várias ocasiões que o procedimento adotado pela Funai para fazer a demarcação de terras indígenas era um procedimento constitucional. Apesar disso, a lei trouxe vários requisitos que tornam mais dificultoso e demorado esse processo. Esses novos procedimentos trazem maior ônus para a Funai.
Quais os impactos dessa tese jurídica para os povos indígenas?
Com a tese do marco temporal, aumenta a dificuldade do Estado brasileiro em realizar a demarcação de terra indígena e ocupação tradicional, ou seja, de efetivar o direito à proteção e a efetivação do direito às terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas.
Igualmente prejudicial são os dispositivos que tratam da revisão de limites das terras indígenas e a fragilização do direito de consulta dos povos indígenas. Todos esses pontos dificultam a implementação da política indigenista, em especial, a política territorial.
Como a Funai tem atuado nos processos de demarcação de terras desde a promulgação da lei?
A Funai tem analisado com cautela procedimento por procedimento para aferir se estão aptos a prosseguir ou se existe alguma providência que necessite ser tomada diante da Lei 14.701.
Como todo órgão público, a Funai tem que seguir toda legislação. E o procedimento de demarcação de terra indígena tem várias legislações que o regulamentam e que a Funai precisa cumprir, como a própria Constituição Federal, nos artigos 231 e 232, a Convenção 169, o Decreto n.º 1.775/1996, a Portaria MJ n.º 14/1996, a Portaria MJ n.º 2.498/2011, a Lei nº 6.001/1973 e a Lei nº 14.701/2023. É esse arcabouço de normas que regulamenta a atuação da Funai nesses processos.
É feita a análise de todo esse arcabouço incluindo a Lei nº 14.701/2023 que a Funai tem que respeitar. Cada caso tem a sua especificidade. Existem casos em que já existe a comprovação de que os indígenas estavam ali e, portanto, se aplica o marco temporal ou que houve o renitente esbulho, mas cada um tem que ser analisado com cuidado.
É uma análise técnica muito bem feita, inicialmente pela Diretoria de Proteção Territorial e, depois, a Procuradoria Federal Especializada junto à Funai (PFE) faz a análise jurídica. A Funai atua dessa forma para garantir a segurança jurídica no procedimento, quando possível.
De que forma a Funai está tentando reverter a medida?
A Funai está atuando de duas formas no Supremo Tribunal Federal. Já foi pedido o reconhecimento da inconstitucionalidade de todas as disposições da lei que, no entender da Funai, são inconstitucionais.
A Funai também está atuando no Tema 1031, proposto pela Funai e julgado pelo STF. Foi feito um pedido nesta ação por ter relação com o que foi julgado pelo STF e pedido para o Supremo julgar no bojo dela as inconstitucionalidades da Lei 1.701.
Foi solicitada atuação perante as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que estão tramitando no Supremo Tribunal Federal. Além disso, a Funai também fornece informações técnicas e jurídicas à Advocacia-Geral da União que participa dessas Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Ou seja, são encaminhadas informações para a atuação da AGU nesses processos.
(*) Com informações do Governo de MS, STF, Ministério dos Povos Indígenas, Funai, Ministério dos Direitos Humanos e Agências oficiais (ABr e Gov)
Foto do destaque: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Demais fotos: Divulgação – Governo Federal