Comissão inicia reparações coletivas inéditas, incluindo a violência da Era Vargas com a injusta expulsão dos povos Guarani-Kaiowá da comunidade Guyraroká
Por Agência 24h, com UOL, Folhapress e Folha de S. Paulo
A reparação de crimes praticados pela ditadura militar há 60 anos e injustiças cometidas há 60 anos, na Era Vargas, contra comunidades indígenas, começam a ser julgadas pela Comissão de Anistia, graças à atualização do seu Regimento. Um dos julgamentos remete a uma ação protocolada em 2015 pelo procurado da República Marco Antônio Delfino de Almeida, que há pelo menos duas décadas denuncia a violência contra os povos indígenas na Grande Dourados, onde o governo de Getúlio Vargas promoveu a colonização com expulsão povos indígenas. A informação foi divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo.
O caso do julgamento para reparação de crimes contra povos indígenas é o primeiro na história do Brasil e da Comissão de Anistia, graças a reforma do Regimento do colegiado no ano passado. O procurador Marco Antônio Delfino protocolou em agosto de 2015 no Supremo Tribunal Federal a ação em que pedia reparação dos danos provocados pela expulsão dos Guarani-Kaiowá da comunidade Guyraroká, em Caarapó, a 60 km de Dourados e a 273 km de Campo Grande. Por conta da violência, a etnia ocupou por vários anos o noticiário em razão dos casos de suicídio.
O ineditismo da Comissão de Anistia
Conforme publicou o jornal Folha de S. Paulo nesta terça-feira, 2 de abril, é a primeira vez desde que foi criada, em 2002, que a Comissão da Anistia vai julgar um caso de reparação coletiva – em que o Estado brasileiro deve pedir desculpas e reconhecer os danos causados pela ditadura – a povos indígenas.
A análise inédita ocorre na semana em que o golpe de 1964 completou 60 anos. Os dois casos envolvem povos expulsos de seus territórios: os povos Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, e os Krenak, em Minas Gerais. Os pedidos de reparação foram feitos pelo Ministério Público Federal) em ações que tramitam há anos.
A Comissão Nacional da Verdade, que foi criada na gestão de Dilma Rousseff e investigou os crimes da ditadura militar, estima que 8.350 indígenas foram mortos por ação do Estado ou por sua omissão nesse período.
Presos em “reformatório” sem acusação formal
Em 1969, a Polícia Militar de Minas Gerais e a Funai inauguram o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, em Resplendor, na Região do Rio Doce. Tal construção, que não tinha qualquer previsão legal que o fundamentasse, foi erguida em terra indígena, onde viviam os Krenak, para o confinamento de indígenas classificados como “perturbadores da ordem tribal”.
O “reformatório” chegou a abrigar 94 indígenas de mais de 15 etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país. Eles eram aprisionados por diversos motivos, tais como embriaguez, manutenção de relações sexuais e saída não autorizada da terra indígena. Nada disso era considerado crime. Mas mesmo assim eram motivos para trabalhos forçados, tortura e maus tratos.
Havia ainda uma espécie de solitária no “reformatório”, que os indígenas chamavam de “cubículo”, onde eram mantidos dia e noite com água escorrendo do encanamento. O tempo de permanência nesse ambiente e em todo o “reformatório” era definido pelo responsável pelo estabelecimento, Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como Capitão Pinheiro.
Proibidos de falar a própria língua
Segundo o MPF, “o fato de o presídio ter sido implantado em terras Krenak fez com que o controle militar sobre os membros da etnia que não estavam confinados fosse também muito incisivo”. Além de serem obrigados, inclusive crianças, a trabalhos forçados, policiais militares proibiram qualquer manifestação cultural, incluindo a comunicação em sua língua.
Com o fechamento do “reformatório”, os indígenas ali presos foram enviados à força para a Fazenda Guarani, em Carmésia, também na Região do Rio Doce. Todos os Krenak acabaram expulsos de suas terras e obrigados a viver a 343 km de distância, em uma espécie de campo de concentração.
Ao chegarem na Fazenda Guarani, os Krenak tiveram que conviver com etnias rivais, poucas terras férteis, clima frio a que não estavam habituados, e a ausência do Rio Doce, que era o centro de suas atividades culturais. E lá também havia local destinado ao confinamento dos indígenas “desviantes”.
Já as terras antes ocupadas pelos indígenas em Resplendor, onde eles plantavam e colhiam o que lhe era permitido pelos militares, foram distribuídas a posseiros escolhidos por autoridades da ditadura. Em 1993, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou nulas as transferências das terras habitadas pelo povo Krenak aos posseiros. Os indígenas recuperaram parte do território.
Os Krenak também foram vítimas do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, em novembro 2015. A lama de rejeitos de mineração poluiu quase todo o rio Doce.
A batalha de um procurador negro pelos direitos dos índios
Para se chegar a esse momento, o procurador Marco Antônio Delfino foi um personagem, talvez o único, a ficar ao lado das vítimas do autoritarismo. Ele enfrentou uma longa batalha em defesa das comunidades indígenas em Dourados. Reportagem do UOL publicada em 2014 trouxe a história do procurador que “incomodava” as oligarquias e os grupos de fazendeiros que se beneficiavam das injustiças contra os povos indígenas.
A reportagem destacava a condição do procurador, filho de militar da Marinha, nascido há 61 anos em Corumbá. Professor de direito constitucional e de direitos humanos, Delfino era, em 2014, um dos 22 negros neste cargo no país — o que representava apenas 2% do total de 1.157 procuradores. Passou por Altamira, no Pará, cidade apontada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) como a cidade mais violenta do país. Retornou a MS e ficou baseado em Dourados, onde viveu no fogo cruzado entre milícias de fazendeiros e indígenas
O MPF defendeu a demarcação da terra tirada dos indígenas, mas foi anulada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com base no marco temporal, a qual os indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988, ou seja, na data da promulgação da atual Constituição.
Marco Antônio dizia: “As pessoas cansam de esperar ser atendidas, ter seus direitos respeitados, ter sua área demarcada. Quem em sã consciência suportaria tantas violações? Os conflitos, a rigor, são indígenas que produzem. Produtores rurais acham que os indígenas podem esperar. Esperar 519 anos eu acho que é um pouco demais” (…) “Muitos conflitos são produto desse processo de achar que eles podem esperar. Esperando que algum dia, nós, dentro da nossa benevolência europeia, vamos conceder alguma migalha da nossa mesa. O termo ‘conflito’ não sei nem se seria adequado. É um processo de reparação de violações”.
Delfino traça um paralelo entre o racismo no Brasil e nos Estados Unidos. Aqui, “a associação do estereótipo do negro é sempre à criminalidade. E isso gera morte de negros”. Nos Estados Unidos, “negros sofrem violência e morrem diretamente por serem negros”.
Seguindo essa linha de raciocínio, o procurador afirma que, no Brasil, o índio morre apenas pelo fato de ser índio. Na mesma métrica em que mulheres morrem por ser mulheres: o feminicídio. “Nós exercemos um quadro de ódio de etnia, contra índios, muito semelhante ao quadro de racismo americano”, analisa.
“No Brasil, há um quadro de genocídio negro dos jovens nas periferias urbanas, mas é sempre um quadro associado à criminalidade, violência. No quadro de indígenas, não há essa associação. São minoria. E as pessoas não aceitam que o dito inferior aja contra o dito superior.”
Legenda da imagem do destaque – Dona Miguela, anciã da aldeia, mostra à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) o túmulo de familiares assassinados na aldeia Guyraroka durante os conflitos de terra (Foto: Christian Braga/Farpa/CIDH – 7.nov.2018)