Bienal Pantanal, encerrada neste domingo (12), homenageou Manoel de Barros como referência maior da literatura contemporânea brasileira.
Por Agência 24h
O poeta Manoel de Barros, homenageado na Bienal Pantanal, já vislumbrava há mais de 70 anos a integração cultural entre o Atlântico e o Pacífico — uma rota bioceânica que hoje integra a agenda de infraestrutura e logística do Brasil.
O tema foi abordado pelo jornalista e escritor Bosco Martins durante a Roda de Conversa realizada na Bienal do Pantanal, encerrada neste fim de semana no Centro de Convenções Rubens Gil de Camilo, em Campo Grande (MS).
Na palestra “Territórios, Culturas e Geopolítica”, mediada pelo músico e escritor Rodrigo Teixeira e com participação do escritor James Jorge Barbosa Flores (Jaminho), Bosco apresentou a edição impressa de seu livro Diálogos do Ócio, publicado pela Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). A obra reúne um inventário de décadas de amizade com Manoel de Barros e traz o achado de anotações inéditas do poeta.
O escritor jardinense Jaminho também destacou passagens de sua trajetória literária e apresentou sua mais recente publicação, A Onça Pitoca.
Entre o público, estavam autoridades, ativistas culturais, escritores, estudantes e admiradores de Manoel de Barros, como o secretário estadual de Cultura Marcelo Miranda, o ativista Carlos Porto e escritores Douglas Diegues, Lenilde Ramos, Sandra Menezes, Wilson Aquino e Samuel Medeiros, entre outros.
Poeta das infâncias
A Bienal Pantanal, encerrada neste domingo (12), homenageou Manoel de Barros como referência maior da literatura contemporânea brasileira. Em sua palestra, Bosco lembrou coincidências simbólicas: os 11 anos da morte do poeta, aos 97 anos, em 13 de novembro de 2014; os 108 anos de nascimento, a serem completados em 19 de dezembro; e o encerramento da 1ª Bienal do Livro de Mato Grosso do Sul em 12 de outubro, Dia da Criança.
Conhecido como “o poeta das infâncias”, Manoel via a infância como uma condição permanente do ser, uma forma de percepção e criação. Bosco lembrou a trilogia Memórias Inventadas (2005, 2006 e 2007), onde Manoel concebe a infância como o ponto de partida e de chegada da existência.
“A infância é o ponto de partida comum de toda a obra de Manoel de Barros. A escrita dele é sempre a escrita de uma infância”, destacou Bosco, emocionando o público com um episódio ilustrativo:
“Quando fez 80 anos, Manoel recebeu o pedido de um editor para escrever três memórias — da infância, da vida adulta e da velhice. Passado algum tempo, enviou o primeiro livro: Memórias da Primeira Infância. O sucesso foi imediato. Depois, enviou Memórias da Segunda Infância. E, algum tempo depois, Memórias da Terceira Infância. O editor, curioso, perguntou pelas memórias da vida adulta e da velhice. Manoel respondeu: ‘Só tive infância. Nunca tive velhez. Só narro meus nascimentos.’”
Bosco ressaltou que, para o poeta, a infância era um antídoto à “velhez”, não à velhice. “Velhez não tem a ver com idade, mas com a perda da capacidade de sonhar. A velhez é o antipossível que sufoca — e está presente nas guerras, nas quais as primeiras vítimas são sempre as crianças”, disse.
Integração cultural e bioceânica
Bosco destacou que Manoel de Barros tinha uma visão integradora e transfronteiriça, especialmente em relação à América Latina. “Ao viajar para a Bolívia e o Peru, Manoel buscava absorver a sabedoria indígena sobre a relação entre palavras e vida — acreditava que as palavras tinham carne, aflição e cor. Isso o levou a criar neologismos e a explorar o ‘deslimite’ da linguagem”, contou.
Segundo Bosco, “nos anos 1950, quando Manoel se comunicava com culturas voltadas ao Pacífico, já praticava uma ação integracionista”. O escritor observou que, hoje, essa visão se concretiza em rotas como a ferrovia bioceânica, financiada pela China, que liga o Brasil ao porto de Chancay (Peru). A Bolívia, embora retirada do traçado original por divergências políticas, permanece inserida nas rotas rodoviárias históricas, como a Estrada do Pacífico.
Multiplicidade cultural
Em sua fala, Jaminho abordou a diversidade cultural e identitária de Mato Grosso do Sul, destacando as “verdades não contadas e desmentidas” que moldam o território “polifônico e poliglota”, com três idiomas principais.
“O mosaico cultural da região se reflete na gastronomia, nas tradições e nas memórias — uma literatura que revisita pensamentos, resgata lembranças e narra paisagens”, explicou.
Natural de Jardim (MS) e registrado em Guia Lopes da Laguna, Jaminho explora em suas 17 obras a identidade miscigenada do Estado, que remonta séculos e atravessa fronteiras culturais. “O tereré, a chipa, a sopa paraguaia — tudo isso fala de uma formação social viva, plural e mestiça”, afirmou o autor, definindo sua literatura como “um espelho do modo de vida polifônico do sul-mato-grossense”.
Diálogos do Ócio – edição impressa
Antes da Roda de Conversa, Bosco Martins concedeu entrevista à Rádio FM 99,9 no estande da UFMS, sobre o lançamento da edição impressa de Diálogos do Ócio pela Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Ele ressaltou que a nova edição poderá ganhar atualização e revisão, em razão dos “achados” inéditos do poeta. “Organizar a memória de Manoel e perpetuar sua obra é uma forma de vencer o esquecimento. Sua poesia imortaliza o poeta e continuará nos conectando à imaginação e à poesia da vida”, afirmou Bosco.
A edição conta com comentários do governador Eduardo Riedel e do neto do poeta, Silvestre Barros, em uma das dobras de capa, além de uma apresentação do biógrafo professor Gustavo Castro.
Nem fazendeiro, nem advogado
Bosco encerrou a participação com uma anedota sobre o poeta:
“Manoel de Barros se formou em Direito, mas nunca foi advogado. Seu primeiro cliente foi também o último: um comerciante acusado de fraudar o peso das mercadorias. Ao admitir o golpe e tentar subornar o poeta, Manoel recusou o caso e disse ao chefe do escritório, enquanto desfazia o nó da gravata: ‘Desisto. A invenção de que gosto é outra.’”
Bosco explicou: “Uma coisa é a invenção que nega a realidade — como as fake news; outra é a invenção poética, que amplia o sentido da realidade. A primeira aprisiona; a segunda liberta. Quando Manoel dizia que ‘poesia pode ser fazer outro mundo’, afirmava que poesia nasce da mesma fonte que a ética.”
A Roda de Conversa terminou sob aplausos das cerca de 200 pessoas presentes. Bosco elogiou a escolha de Manoel de Barros como homenageado da Bienal e convidou o público a visitar o Museu-Casa Quintal Manoel de Barros, que será reaberto em breve, totalmente reformado, com livros do poeta e de Bosco Martins disponíveis.
“Manoel vive através de sua obra, preservada com dedicação por Martha Barros, sua filha, e pelo neto Silvestre Barros, com apoio da Fundação Nelito Câmara”, concluiu Bosco Martins.