Reportagem integra série em comemoração aos 60 anos da Globo, com histórias e personagens que marcaram a televisão ao longo do tempo

Por Agência 24h
Neste sábado (26), o Meu MS da TV Morena foi até Minas Gerais contar a história de três personagens e amigos que deram visibilidade ao Mato Grosso do Sul e à literatura brasileira. O encontro emocionante entre Zé Hamilton e Bosco Martins, em homenagem a Manoel de Barros, foi exibido neste sábado no Meu MS, dentro das comemorações dos 60 anos da Globo e pode ser revisto no aplicativo GloboPlay.
O que fez surgir uma produtiva e duradoura amizade entre o repórter mais premiado do Brasil, Zé Hamilton Ribeiro, o consagrado poeta Manoel de Barros, e Bosco Martins — autor do livro Diálogos do Ócio, sobre o poeta pantaneiro e ex-repórter da TV Morena? A resposta é simples: o gosto pelo encantamento.
Encantamento que despertou nos três amigos a paixão por Mato Grosso do Sul, na visão de José Hamilton através do jornalismo rural, na poesia de Manoel de Barros dando importância às pequenas coisas, e no ativismo de Bosco Martins e devoção à cultura interiorana.
Bosco Martins e José Hamilton Ribeiro, que têm em comum as origens do interior paulista, conheceram Manoel de Barros quando o poeta desfrutava de uma vida pacata em família, na casa da rua Piratininga, no Jardim dos Estados, em Campo Grande, hoje transformada na Casa Quintal. Foi o endereço definitivo de Manoel de Barros, depois de assombrosa projeção literária. Era ali que o poeta operava em seu “Escritório de Ser Inútil” e por três décadas desfrutou do “ócio poético” com o amigo Bosco Martins.

A obra de Manoel de Barros e os encontros para conversas amiúde entremeio a chás e recitações do Bardo, como o poeta apelidou o amigo, acabou resultando na obra Diálogos do Ócio, prefaciada pelo notável repórter do Globo Rural. Os três amigos abraçavam a realidade e a transmitiam da forma mais simples, dando importância à realidade invisível aos olhares do cotidiano. Manoel de Barros dizia: Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”.

Zé Hamilton se consagrou como correspondente de guerra no Vietnã, onde perdeu uma perna ao pisar em uma mina, contou em livro “o sabor da guerra”, recentemente reeditado para deixar claro a necessidade de uma reflexão global sobre a insanidade humana. A guerra é um momento de fraqueza do ser humano, não é um momento de grandeza. O momento de grandeza do ser humano está na poesia…”. E a grandeza da poesia contribuiu para a longeva amizade dos três interlocutores e narradores de histórias, emoções e ideias.
O encontro histórico de Zé Hamilton e Bosco Martins para descompromissada, mas relevante reverência ao poeta Manoel de Barros será mostrado neste sábado pela TV Morena no programa Meu MS dentro das comemorações dos 60 anos da TV Globo, em reportagem com produção de Daniela Perez, imagens de Jairton Costa e pré-edição de Roque Martins. Bosco destaca que Manoel de Barros era “um ser letral” sem rotulação, mas de grande percepção sobre natureza, animais, plantas e água, um espelho do que é o Pantanal. “Podemos observar na obra de Manoel de Barros todos os gêneros literários e textuais, sem nenhuma preocupação do poeta com os padrões clássicos. Ele criou uma nova escola da contemporaneidade, era sui generis. Como pessoa, era um figuraça, divertido, eu via nele uma pessoinha humilde, coração bondoso demais, fiz questão que toda minha família o conhecesse”.
REPORTAGEM EM ‘BERABA’

A cada reportagem sobre José Hamilton Ribeiro vem logo a questão que já se tornou clássica nas reuniões de pauta nas redações quando o tema é a carreira do repórter mais premiado da imprensa brasileira. Tudo que se disser já foi dito, mas há particularidades, há o amadurecimento e percepções que se renovam no tempo por conta das transformações e seus impactos na civilização humana.
Então, por que não buscar as novas percepções, sem deixar de passar em revista fatos emblemáticos do passado, não apenas através de uma reportagem compartimentada, mas por meio de um descontraído bate-papo entre dois caipiras do jornalismo literário?
O jornalista e escritor Bosco Martins topou a ideia de ir até José Hamilton Ribeiro, que aos 89 anos vive do jeito que sempre quis, na tranquilidade de sua fazenda em Uberaba, ao pé da Serra do Beirado, conectado com a natureza. Era a oportunidade de uma imersão nas lembranças de Mato Grosso do Sul, do Pantanal.
Poucos sabem, mas entre os títulos usados para referenciar Zé Hamilton, como “repórter do século”, a citação mais usada, ele é mencionado como o Karaí-Guasu da imprensa, como recorda Bosco Martins. Os dois viveram episódios comuns em incursões profissionais que os aproximaram dos povos indígenas, como os kadwéu.
“Karaí-Guazú”, ou “Karaí-Guasu”, é uma expressão tirada da língua guarani, que significa “Grande Senhor”, mas que é utilizado no Paraguai também como “Pai de Todos”. Foi usada há mais de quatro séculos para referenciar José Gaspar Rodríguez de Francia, um dos grandes personagens da história paraguaia.
A relação com os kadwéu inspirou Zé Hamilton a escrever A vingança do índio cavaleiro -, falando da história e hábitos desse povo que, assim como outras etnias no Estado, quase foi dizimada. Como uma voz permanente em defesa dos povos originários, surgira então o Karaí-Guasu. Um cacique citado no livro fora, segundo Zé Hamilton, inspirado no João Príncipe, o grande chefe kadwéu que morrera picado de cobra, a temida “boca de sapo”. Não quis ser levado para a cidade, preferiu ser cuidado com ervas nativas, mas não resistiu.
A grandeza está na poesia

Além das reminiscências de uma carreira de jornalismo rural que interiorizou a comunicação no Brasil e as novas impressões sobre guerra, Bosco Martins reencontrou o mestre, que foi um dos fios condutores do seu livro Diálogos do Ócio, sobre Manoel de Barros. “É um tijolaço, tem quase 400 páginas”, disse, ao entregar um exemplar autografado e dedicatória ao amigo Zé Hamilton, agradecendo a participação dele por, não só ter escrito o prefácio, mas também editado grande parte da obra, sugerindo e corrigindo através de incontáveis trocas de email. Zé Hamilton teve uma ligação próxima com o poeta e os dois foram duas vozes que ecoaram e deram visibilidade ao Pantanal, no Brasil e no mundo.
– As pessoas parecem não querer ler muito – diz Bosco sobre a quantidade de páginas de Diálogos do Ócio.
– O povo está muito preguiçoso de ler hoje em dia. Mas é muito fácil de ler. Você vai lendo e… Você vai embora. Vai embora… – observa Zé Hamilton, autor de nada menos que 20 títulos e uma invejável biblioteca em casa.

O reencontro entre os dois caipiras do jornalismo literário não poderia ter um único tema, mas O Gosto da Guerra já era um livro impactante. Agora, se tornou uma leitura indispensável às novas gerações. Indispensável até ao próprio autor que, movido pelas transformações e momento de escalada dos conflitos armados, se viu induzido a relançar uma edição ampliada e atualizada. Zé Hamilton diz que escreveu o livro sem muita pretensão, mas o tempo e a história foi dando uma dimensão muito grande.
– Fico muito emocionado e triste. A guerra é um momento de fraqueza do ser humano, não é um momento de grandeza. O momento de grandeza do ser humano está na poesia, está no correto, está no escritor, está na mulher.
As transformações que induziram José Hamilton Ribeiro a fazer o relançamento do icônico livro O Gosto da Guerra, se resumem em uma reflexão global. O conflito que se configurou na Guerra do Vietnã ou Segunda Guerra da Indochina, tivera motivações ideológicas entre dois governos vietnamitas, mas que teve participação direta dos Estados Unidos.
A guerra durou de 1959 a 1975 e o Brasil pôde se informar com Zé Hamilton, primeiro repórter brasileiro (enviado pela Revista Realidade) a estar no front de uma batalha. Sempre quis mostrar o lado bom da vida da população vietnamita, sua cultura, hábitos e tradições e até hoje se comunica com um amigo de mais de meio século atrás. No teatro do confronto sangrento teve uma perna explodida por uma mina terrestre.
Ao estilo marcha lenta

Em Minas Gerais há uma antiga expressão usada para entender o modo de vida da população mineira que traduz bem o estilo de vida desde sempre preferido e agora usado por Zé Hamilton. Uma vida “de marcha lenta”. Esse dito popular, que vem de gerações a gerações, não significa, de modo algum, andar para trás, traduz o comportamento tranquilo, sossegado e sem muita pressa. A ansiedade, exceto como patologia, não faz parte do cotidiano dos mineiros.

O paulista da pequena Santa Rosa do Viterbo vive assim, muito sossegado, não se ocupa de rotinas metódicas. Adora o contato direto com a natureza, contemplando os arvo-redos, os pássaros, sentindo o ar puro do campo e espiando o comportamento dos animais. Se alegra com os sabiás, que entre setembro e janeiro se aninham na varanda da casa.
Em sua fazenda em Uberaba Zé Hamilton é tratado pelos sobrinhos como Ti Zé. É assim mesmo, em Minas o modo tranquilo também reflete na abreviação dos vocábulos – Beraba, Belorizonte – e linguagens figuradas. Ninguém melhor que o “Senhor Globo Rural” para compreender e interagir com todas as linguagens do brasileiro nos quatro cantos do país.
Bosco é da época em que repórter já descia plugado, ou seja, com o microfone na mão e o cinegrafista filmando, fase de muita competição jornalística. Com a tecnologia a produção jornalística foi se tornando mais impessoal. O interior sempre foi a praia dos dois caipiras do jornalismo e assim é que ambos escolheram seus refúgios nos campos de Uberaba, em Minas, e Bonito, na confluência dos biomas Pantanal, Cerrado e a Mata Atlântica da Serra da Bodoquena.
Para José Hamilton e Bosco Martins, a origem interiorana e o gosto pela vida no meio rural é uma característica intimista de quem aprecia o mato e a diversidade do meio rural, como Manoel de Barros enxergava em seu “quintal”. Houve uma cumplicidade de Bosco na aproximação entre Manoel de Barros e Zé Hamilton. Através de Diálogos do Ócio buscou-se promover encontro simbólico entre o imaginário e o real, a interação do lugar do eu com o lugar do ser. “Manoel de Barros se expressava por meio de dois seres, o humano e o letral”.
Chalana – Enquanto rolava a reportagem especial para o programa Meu Mato Grosso do Sul, Bosco se alegrava com o bate-papo com o conterrâneo do interior paulista. E seguia desafiando a memória de Zé Hamilton sobre fatos pitorescos.
Das diversas reportagens de Zé Hamilton no Pantanal, Bosco pinçou um fato marcante sobre a origem de um dos hinos pantaneiros mais conhecidos no Brasil – a música Chalana. Zé Hamilton queria mostrar ao Brasil o que era uma chalana e nada mais emblemático de mostrar aquela embarcação tradicional do Pantanal junto com Mário Zan, o compositor da música Chalana.
A composição, inicialmente sem letra, foi inspirada décadas antes, quando Mário Zan observava de um quarto de hotel em Corumbá as embarcações descendo o rio Paraguai. Com a letra composta muito tempo depois por Arlindo Pinto, veio a expressão Chalana, encaixada naquela melodia de Mário Zan tocada na sanfona.
– Lembra-se da última matéria que você fez no Pantanal?
Com tantas reportagens realizadas em Mato Grosso do Sul, perto dos seus 90 anos, Zé Hamilton exercitaria a memória.
– Pois é, eu até nem lembro.
– Eu vou te lembrar. Você foi mostrar como era uma chalana com o Mário Zan.
Pois bem, Mário Zan fez a melodia que, tempos depois ganhou letra, mas o compositor tinha no imaginário cenas de embarcações. A típica chalana, seu estilo rústico, alongado com a cobertura de lona ou bacuri era para Zan uma embarcação cujo nome desconhecia. Encomendara uma e só soube na reportagem que aquele barco era a típica chalana.
– Então, o Mário Zan, como todo poeta, ele era muito… assim, estava sempre nas estrelas. Ele ficava encantado. No Pantanal, quando ele via uma arara, falava: mas que coisa maravilhosa! Ele ficava olhando a arara e não acreditava no que estava vendo. Ficava encantado. Não queria mais sair dali, queria ficar olhando a arara. E a chalana, então, ele se encantou de vez. Nossa! Quando ele viu o Rio Paraguai, se encantou…
Pantanal – fonte de inspiração

As reportagens no Pantanal inspiraram duas publicações de José Hamilton – o livro “Pantanal, Amor Baguá” (um hino de amor à vida simples, bela e selvagem da região), e “Rio Paraguai – Das Nascentes à Foz”. Nas obras de Manoel de Barros e de José Hamilton, o mundo viu a importância de lutar pela preservação do Pantanal, a possibilidade de uma vida solta e livre de cercas e muros.
Sobre nada, inutilidades, pequenezas, deleite do ócio, introspecção, timidez crônica, facilidade em lidar com os estímulos da natureza e capacidade em transmitir a beleza do imperfeito. Há genialidade nessas características que moldam o perfil do poeta e José Hamilton aponta, no prefácio de Diálogos do Ócio, a compreensão sobre a feição do poeta pós-modernista.
Embora buscasse conjugar elementos regionais às considerações existenciais e surreais sobre o ambiente à sua volta, Manoel de Barros falava das pequenas coisas ao mesmo tempo que via o mundo menor que o seu quintal criativo. Muito mais tímido do que temperamental, Manoel de Barros tinha grande dificuldade de falar em público, mas todas suas “inquietudes” transbordavam na escrita.
Pantanal sempre teve a ver com a obra de Manoel de Barros e a icônica carreira de repórter de Zé Hamilton. Não à toa o primeiro trabalho dele foi como freelancer, uma reportagem sobre o Pantanal, que à época era um desafio, pois tratava-se de uma região pouco explorada e, portanto, pouco vista na televisão brasileira. Isso se deu graças ao Globo Rural, um programa que se tornaria uma espécie de sinônimo de José Hamilton Ribeiro. Sua imagem se associou de forma espantosa a Zé Hamilton, pelo jeito que ele tocou o programa por longos anos, com fidelidade e emoção. Era a parceria perfeita – um dos melhores repórteres brasileiros com um dos melhores programas da televisão brasileira.
A simplicidade do jornalista fazendeiro

Bosco Martins passou o feriado da Consciência Negra, 20 de novembro, na fazenda do Ti Zé, como é tratado Zé Hamilton pelos sobrinhos Ana Maria e Luiz Antônio.
– Pensa em uma pessoa simples, tranquila, lúcida. Capaz de dizer tudo em uma única frase, sintetizar a vida em poucas palavras.
Ti Zé vive na fazenda sem ser importunado, sempre assistindo pelos familiares e funcionários que têm enorme apreço por ele. Tudo anda no ritmo da natureza, ao som dos pássaros, do vento e o cheiro de mato e pasto de boi. Zé Hamilton teve quatro irmãos e três irmãs – Luiz, Antônio, João, Joaquim, Maria Aparecida, Ana Maria e Maria Stela. Todos falecidos, então são a filha, sobrinhos e netos que ajudam o jornalista a administrar os bens. Os “bens” que tomam as atenções dele, na verdade, são a biblioteca e os animais silvestres, como os sabiás, que chegam de manhãzinha na varanda da casa.
A sobrinha Ana Cristina tem sua fazenda do outro lado de Uberaba, mas sempre vai à propriedade do tio para as providências de praxe na administração dos negócios. Zé Hamilton é pecuarista, mas quem lida com a parte burocrática é a sobrinha. “Estou fazendo o que posso, só posso dizer que há muito trabalho, o Zoca e o Branco me auxiliam. Ultimamente ando bastante atarefada”.
No dia-a-dia de Zé Hamilton há a presença constante de Dona Santina ajuda nos afazeres, dona Aparecida toca a cozinha, os sobrinhos Luiz Antonio (Zoca) e Antonio Carlos (Branco) estão sempre por perto e a sobrinha Ana Cristina ajuda na administração da fazenda. Carlinhos, marido de dona Aparecida, é quem cuida da produção leiteira.
Zé Hamilton tem uma fase que se tornou célebre nos meios jornalísticos, onde se buscava a fórmula do sucesso de um bom repórter. Na sua simplicidade, Zé Hamilton dizia que “a gente aprende no dia a dia”, não existe um método. E no aprendizado do dia a dia aprendeu pelo menos três coisas: “Primeiro, azeitona preta é tingida; segundo, nos banheiros, em geral, a torneira quente é a da esquerda; terceiro, de ovo de cobra, não sai canarinho”.
Esse modo de conceituar as coisas guarda certa similaridade com o neologismo barreano, ou o “abecedário manoelês”, que o poeta Manoel de Barros denominava “idioleto archayco”.
Sobre o título que atesta, de forma inequívoca, o conceito atribuído a Zé Hamilton na linguagem indígena, de Karaí-Guasu, se deduz que a percepção de repórter, independentemente dos mundos, analógico ou digital, nunca pode se dissociar a sensibilidade humana. Sem a sensibilidade não se é capaz de ser fiel ao fato, à realidade
É com uma particular sensibilidade que Zé Hamilton discorreu lembranças de Mato Grosso do Sul ao receber a visita do conterrâneo paulista Bosco Martins e a equipe de reportagem da TV Morena, afiliada da Rede Globo.
– Desde a primeira vez que fui para o Mato Grosso do Sul, aí criou uma… parece que eu tinha uma raiz lá. Eu encontrei uma mandioca lá onde eu devia ter nascido. Então, desde então, na minha vida profissional, muitas vezes eu voltei ao Mato Grosso do Sul e sempre que posso, eu volto. De preferência, sem trabalhar. O estado do Mato Grosso do Sul é uma joia do Brasil. É um estado muito acolhedor, muito caloroso humanamente. E tem uma natureza exuberante, uma coisa inacreditável. Minha primeira matéria foi sobre o Pantanal, eu fiquei encantado com aquilo. Fiquei deslumbrado.
Como o típico mineiro “marcha lenta”, Zé Hamilton desfruta muito satisfeito da vida que leva, passarinhando, como escrevia Manoel de Barros. Para Zé Hamilton, é fácil compreender a poesia de Manoel de Barros, basta imergir na natureza e ver o mundo como ele é de fato, um ambiente formado não só por grandes coisas, mas também pelas miudezas, que na vida de todos têm grande significado. Mas que, infelizmente, a maioria das pessoas não percebe.
Sobre Diálogos do Ócio, Zé Hamilton diz que o autor e personagem são ricos de substância humana, o que torna o livro uma preciosidade, quase um mandamento.
– Olha, é muito fácil falar do Manoel de Barros, porque ele era um poeta. E poeta é uma coisa indefinível. O poeta não tem limite, ele não tem limite, não acaba. Não acaba não. Você sabe o começo dele, mas o começo continua, o começo vira meio e não chega no fim nunca. A relação com o Manuel era assim. Toda vez que eu o visitava, podia beber, me alimentar com a inteligência dele, eu ficava babando na presença dele, ouvindo, e geralmente cutucando ele para ele falar mais, porque ele era muito reservado, falava pouco, mais descansado. Mais recluso, mais descansado. Mas o pouco que ele falava valia muito. E o pouco que ele escreveu é valorizado hoje. Muito. O pouco que ele deixou escrito a gente vê hoje que é precioso. Por exemplo, gente besta e pau-seco não acaba nunca. Não acaba nunca no mundo gente besta e pau-seco. E realmente ainda tem muita gente besta no mundo.
Leia a integra do descontraído bate-papo entre Bosco Martins e José Hamilton Ribeiro:
Bosco Martins – Meu Mato Grosso do Sul tá aqui hoje em Uberaba, Minas Gerais, aqui na fazenda Furquilha, dele que é paulista de Santa Rosa do Viterbo, mas que agora virou mineiro. Zé Milton Ribeiro, o homem do Globo Rural, não é só o repórter mais premiado do Brasil, ele é o repórter mais querido do Brasil. O Brasil sente a falta do Zé Milton Ribeiro. Nós estamos aqui para falar com ele também sobre o Mato Grosso do Sul, o meu Mato Grosso do Sul, que ele deu tanta visibilidade através de suas reportagens inesquecíveis. Zé, você tem ideia de quantas matérias você fez de Mato Grosso do Sul?
José Hamilton Ribeiro – Ih, rapaz, desde a primeira vez que fui para o Mato Grosso do Sul, aí criou uma… Parece que eu tinha uma raiz lá. Acho que eu encontrei uma mandioca lá onde eu devia ter nascido. Desde então, na minha vida profissional, muitas vezes eu voltei ao Mato Grosso do Sul e sempre que eu posso, eu volto. Para trabalhar ou sem trabalhar, de preferência, sem trabalhar. E eu vim trabalhar na TV Morena. Você me falou que lá é uma mina inexplorável de informação. O que te encantou? O estado do Mato Grosso do Sul é uma joia do Brasil. É um estado muito acolhedor, muito caloroso humanamente. E tem uma natureza exuberante, uma coisa inacreditável. O Pantanal é uma coisa inacreditável, a beleza do Pantanal, a riqueza, a variação de uma estação para a outra, o que muda no Pantanal.
BM – E a sua primeira matéria foi sobre o Pantanal, não é, Zé?
JHR – Foi sobre o Pantanal. Fiquei encantado com aquilo.
BM – Você lembra a última matéria que você fez lá?
JHR – Pois é, até nem lembro.
BM – Eu vou te lembrar. Você foi mostrar como era uma chalana para o Mário Zan.
JHR – Para o Mário Zan?
BM – O Mário Zan fez a chalana e não conhecia aquele tipo de embarcação. Aí você disse para o Mário Zan: essa aqui é a chalana. Você lembra disso?
JHR – Como é que foi isso aqui? Como todo poeta, ele era muito, assim, estava sempre nas estrelas, sempre nas estrelas. Ele ficava encantado no Pantanal, quando ele via uma arara, ele falava, mas que coisa maravilhosa. Ele ficava olhando a arara e não acreditava no que ele estava vendo. Ele ficava encantado, não queria mais sair dali. Lá vai uma chalana, bem longe se vai A rota bioceânica, aquele sonho antigo de interligar aquela região de fronteira. É uma força da natureza, é uma coisa que vai se realizar, vai se realizar.
BM – José, você está fazendo o que hoje aqui no pé da Serra do Berá?
JHR – É uma fazenda de produção pecuária, aqui não tem a agricultura né? É pecuária, é uma criação de gado, assim, gado, criação a pasto. E uma situação tranquila, uma vida mansa, né?
BM – Você está aqui só coçocando, o Manoel de Barros falava, estou aqui só coçocando. Você está aqui como dizia o Manoel de Barros, passarinhando, né? Passarinhando… José, a repórter Daniela Pérez está aqui querendo uma fala sua sobre o poeta Manoel de Barros. Quem era para você o Manoel?
JHR – Olha, é fácil falar do Manoel de Barros porque ele era um poeta, né? Sim. E poeta é uma coisa indefinível… É indefinível. O poeta não tem limite, ele não tem limite, ele não acaba nunca… Não acaba nunca, você não sabe, você sabe o começo dele, mas você vai e o começo continua, o começo vira meio e não chega no fim nunca, né? A relação com o Manoel era assim, toda vez que eu o visitava e que eu podia beber, me alimentar com a inteligência dele, eu ficava babando na presença dele, ouvindo. E geralmente eu ia se cutucando nele para ele falar mais, porque ele era muito reservado, falava pouco, ele era mais descansado, mais recluso, mas o pouco que ele falava valia muito. Ele dizia que no mundo o que não acaba nunca é gente besta e pau seco. Mas gostaria que o Bosco falasse um pouquinho pra gente como é que foi essa construção com o (livro) Diálogos do Ócio.
BM – Na verdade, você é o grande editor do livro Diálogos do Ócio, né, Zé? A gente trocava conversavas por e-mail e falava Zoroava… Pesquisa essa palavra… Pesquisa, ela tem no dicionário manuelês, né? Tem dois mil verbetes, alguns neologismos que o poeta criava. E aqui dentro dele, né, Zé, você sabe disso, porque foi o editor desse livro, estão nessa obra os dois Manoéis, né? O Manoel de carne e osso… Como tem o Zé Hamilton aqui, ó, que a gente aperta, de carne e osso. E tem o ser letral, né? E esse Manoel letral certamente está aqui no livro. O sumário é uma pauta dele, foram três anos, Zé, você trocando e-mail e dando a chamada do livro e tal. O que você achou, Zé?
JHR – Ah, sim, uma preciosidade, né? Uma preciosidade, reunindo duas personalidades tão ricas… O Manoel de Barros e o Bosco Martins. Com certeza. Duas pessoas muito ricas, de substância humana, muito fortes, né? Então é um livro que, no Brasil é quase que um mandamento, um dos dez mandamentos.
BM – É, Zé, eu agradeço. Ele é um tijolaço, na verdade, tem 400 páginas. O cara não pode ter preguiça de ler, né, Zé?
JHR – O povo está muito preguiçoso de ler hoje. Mas é fá-cil, muito fácil de ler, né? Você vai lendo e… Você vai embora. Vai embora, vai embora.
BM – O Zé está relançando o Gosto da Guerra!
JHR – O Gosto da Guerra é um livro que foi escrito sem muita pretensão na época, mas que o tempo e a história foi dando uma dimensão que hoje me comove muito… Eu fico muito emocionado, né? Ver que muita gente presta atenção, né? O Senhor da Guerra teria que ir no front lutar, aí não ia ter guerra. A guerra é um momento de fraqueza do ser humano, né? Não é um momento de grandeza… Um momento de grandeza do ser humano está na poesia, né?
BM – Manuel de Barros completaria 108 anos no dia 19 de dezembro de 2024. Mato Grosso do Sul os dois, Zé Milton Ribeiro e Manuel de Barros, né? Merecem essa homenagem. Mato Grosso do Sul quer te homenagear também, Zé. E gostaria que você deixasse uma mensagem.
JHR – Fico muito agradecido, muito emocionado. E tudo que se refere a Mato Grosso do Sul, a Mato Grosso, aquele lado lá do Brasil, mexe com o meu coração, né? Mexe muito com o meu coração. O coraçãozinho cada vez é mais apertado, né? Com a idade, o olho vai ficando mais fraco, né? Mas parece que quando se fala de Mato Grosso do Sul, a luz ilumina mais…. E a gente vive de luz, né? A sombra é só o final. Toda vez que se fala do Mato Grosso do Sul, é um replicado de luz. Parece que a luz dobra.
