Por Rita de Cássia Pacheco Limberti*
"É essa a única missão no Mundo, Essa—existir claramente, E saber fazê-lo sem pensar nisso.” Fernando Pessoa
Eis que, da fotografia da capa, Manoel me fita (quisera eu) sorridente. Debruçado com seu jeito tão simples à janela, detém nosso olhar e nossos dedos ansiosos por virar a página e começar a leitura. A janela está aberta e sobre ele incide uma luz menor que a sua… Agora ele pode permanecer à janela o tempo que quiser… contemplar seu vastíssimo quintal…. os poentes comoventes, o deslizar das águas do rio, as árvores, os passarinhos, as miudezas do chão, os caramujos, os ciscos, as coisas inúteis… com seu olhar singular perscruta imagens inusitadas, como que sacadas de outra dimensão (a das as grandezas do ínfimo) … e, em sua generosa sina de poeta, reparte-as todas conosco. Agora o ócio é sua condição… o ócio, que ele buscou obstinadamente para entregar-se-lhe aos braços, e produzir os mais belos e abundantes pomos… o ócio é o cio da criação.
“No descomeço era o verbo.” Manoel foi verbo a vida inteira… criou mundos, pessoas, deu vida a coisas, voz ao que não fala, deu cor, beleza e existência ao despercebido. Fez isso durante sete dias… e descansou. Na dimensão de Manoel, os dias não terminam… apenas anoitecem… Como uma bíblia, repousa em minha cabeceira o livro… os diálogos ecoam em minha mente… e, da fotografia da capa, Manoel sorri de minha devoção… Leio-o todas as noites, li-o inteiro por várias vezes… nunca de cabo a rabo… sempre de cor (com o coração) e salteado… como se leem versículos. A hesitação inicial de começar a lê-lo deu lugar a uma decidida confiança de tornar-me uma interlocutora dos “diálogos”, de “entrar na conversa”. Viro a página.
Qual não é minha grata surpresa, ao encontrar, no prefácio, um interlocutor mais que especial: José Hamilton Ribeiro. Notável e premiadíssimo jornalista brasileiro, o autor de inúmeros livros notabiliza-se por seu estilo coloquial, que cai como uma luva na obra como um todo: a narrativa intimista de Bosco e a linguagem despojada e primitiva de Manoel. A amizade de José Hamilton com Bosco Martins (BM) e Manoel de Barros (MB) transborda o texto e torna-se um cálido diapasão de suas palavras, as quais, ao revelarem sua proximidade com o poeta, estendem-nos gentilmente a mão para entrar, à vontade, na roda da conversa. São fatos e episódios tão interessantes narrados pelo jornalista, que continuamos calados, só ouvindo… sobretudo quando ele conta que deu sua voz a poemas de MB em DVDs e documentários… Que privilégio! Ao concluir seu prefácio, que é uma bela mostra do que se terá à frente, não deixa a roda da conversa… apenas deixa Bosco falar, pois este tem muito o que contar.
Bosco Martins, BM (intrigante inversão das iniciais de Manoel de Barros (MB)), nos brinda com uma obra única, de grande valor histórico e literário, na medida em que traz registros preciosos tanto da vida quanto da obra do poeta, amealhados ao longo de décadas de convivência. Com rara sensibilidade (esta que o aproximou do poeta) e delicadeza, BM nos revela momentos importantes, cruciais da vida de MB, os quais, embora alguns confidenciais e dramáticos, nos chegam com tal respeito e comedimento que nos soa mais como uma honrosa e generosa partilha do que a exposição de dados interessantes ao mercado editorial.
A fluida narrativa de tantos fatos – dos mais pueris e burlescos aos mais graves e tristes – gera um tom tão confidencial e intimista que nos traga para o interior do universo pessoal, artístico e familiar do poeta, permitindo-nos estar em sua casa, percorrer os corredores, subir as escadas até seu “escritório de ser inútil”, sentar no sofá ao seu lado com Bosco, contemplar seu quintal. De forma abstrata, temos acesso ao âmago do homem comum e extraordinário, de forma concreta conhecemos seu fazer artístico, sua história, sua trajetória, sua eterna infância. A dedicatória de Bosco, no início do livro, é desnecessária, pois sua obra é a evidência de sua devotada dedicação ao poeta durante décadas. Da página ao lado, Manoel de Barros “pojerá” (mão aberta em guarani) sorri seu sorriso mais aberto com as mãos estendidas. Ele agradece.
As imagens constituem rico acervo fotográfico. Mais do que ilustrar os textos, seu conjunto compõe uma narrativa própria. Pontuais registros dos momentos marcantes da vida do poeta vão desfilando ante meus olhos, no vai e vem das páginas à procura das imagens. O tempo avança e recua em espiral… me traga e me coloca ante seus pais, que fito com detida reverência, me leva ante a clássica cena de Manoel e Stella vestidos de noivos no dia casamento, ou jovenzinhos passeando, elegantes, numa calçada do Rio… Folheio mais algumas páginas e aparecem Manoel e Stella em sua casa, nos últimos tempos, numa cena trivial de um café da tarde, juntos numa união sexagenária… O sorriso de Manoel atravessa as cenas a iluminá-las… em muitas delas com o amigo Bosco, nos “diálogos do ócio”… seu sorriso é um alento para a profunda lástima que me assalta ante a passagem do tempo … mesmo quando ele parece menos brilhante na última foto com Bosco.
Os “diálogos do ócio” perderam seu interlocutor mais ilustre… mas Bosco não se cala! Ao contrário, faz reverberar a voz do poeta com toda a veemência, abre as portas da casa, coloca-o à janela (na capa do livro) para nos receber e partilha conosco inúmeros fatos e episódios de tal modo interessantes e intimistas, que, ao final do livro, sinto-me tão próxima a Manoel que o pesar por sua perda avulta-se exponencialmente. Assim, ao mesmo tempo em que o livro me traz notável intimidade com o poeta, instala-me uma orfandade irreparável… Ao terminar a leitura, uma sensação de enlevo e de vazio provoca um impulso de lê-lo novamente… aleatoriamente… buscando entre as páginas o vínculo invisível e indelével que este livro engendra. Na contracapa, sobre um fundo vermelho, uma mensagem de Manoel a Bosco nos estende um longo abraço, eterno – eu diria -, pois num desenho simples seus braços se estendem abertos para sempre… mesmo fechado, o livro reverbera os diálogos.
Em sua generosidade anunciada na Nota do Autor, Bosco, o “Bardo” – a quem MB satiricamente assim apelidou pelo fato de aquele saber mais de 60 poemas de cor e não fazer confusão entre eles -, prenuncia a vertiginosa viagem que o livro nos propõe ao âmago do poeta nas asas de uma atemporal acronologia (cometendo um neologismo manoelino). Tanto na sequência dos capítulos, quanto nas “Entrevistas que ninguém fez” (Capítulo II), os fatos são apresentados como flashes, talvez pelo fato de cada um encerrar em si, pela importância, uma cintilância própria que não se submete à enquadrante uniformização da linha temporal. Assim, tem-se, desde a introdução, pérolas da linguagem e do acontecimento, como: “O ócio do ofício”, genial trocadilho que resume, em uma frase, a importância do ócio como “respiro” da atividade criadora, que nos remete, inevitavelmente, à teoria do “Ócio criativo”, de Domenico De Masi.
São muitos os fatos e episódios – como o poeta submeter infalivelmente seus escritos ao crivo da esposa Stella, respeitando rigorosamente suas observações – que montam e compõem um cenário quase onírico. Adentramos as cenas e flagramos um “Manoel, humilde, mas vaidoso” (Capítulo I) e um amoroso filho e irmão de Abílio Leite de Barros, que honra a verve da escrita da família com uma narrativa fluida e interessante sobre “A saga dos Barrinhos” (Capítulo III). Ao final da narrativa de Abílio, para chancelar a mágica genealogia e, de certa forma tentar explicar a inexplicável criatura de Manoel de Barros, um de seus poemas mais pungentes se apresenta, manuscrito, em fac-símile: “Auto-Retrato falado”. “Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo.” é o verso mais pungente: em uma frase, essencialmente poética, MB faz uma revelação de si, pessoal mas universal, afinal todas as pessoas se procuram a vida inteira; contudo, ter a consciência de que não se achar é a salvação é para poucos. Fernando Pessoa já teria dito isto de outra forma em seu célebre poema “Prece”, cujos últimos versos tratam do perigo do acesso do sujeito ao seu âmago subjetivo: “Senhor, protege-me e ampara-me. /Dá-me que eu me sinta teu. /Senhor, livra-me de mim.” Além de tratar do risco de achar-se a si mesmo, tais versos (tanto de Barros quanto de Pessoa) revelam que o sujeito é a fonte e origem de todos os seus próprios males. Além de poesia, os escritos têm um forte componente filosófico e psicanalítico, que o ato de escrever privilegiadamente enseja. Este é outro aspecto primoroso do livro, que apresenta, de forma natural, a face oculta de Manoel.
Coroam as narrativas de família do terceiro capítulo “Nequinho”, texto de dona Stella, esposa do poeta, que apresenta a si e ao marido de uma forma tal que se pode vislumbrar, com clareza, os segredos desta união tão feliz e duradoura, bem como o seu papel crucial na vida do homem e do artista Manoel de Barros. De modo complementar, ela exerce as funções práticas necessárias ao andamento da vida da família, enquanto Manoel, em sua “incompletude”, “não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,/ que puxa válvulas, que olha o relógio, / que compra pão às 6 horas da tarde, / que vai lá fora, que aponta lápis, / que vê a uva etc. etc. / Perdoai / Mas eu preciso ser Outros.” Para ele poder ser “outros”, Stella tem que ser ele nas situações cotidianas do casamento, pois, além do ócio, ele precisa de paz. Ele mesmo, MB, relata em uma de suas entrevistas do capítulo II: (…) “Sempre tive vida tranquila. (…) Tudo isso conta em minha poesia.” O tom ontológico se acentua ao final de “Nequinho” (apelido íntimo familiar de MB), quando Manoel, em seu poema “A poesia está guardada na palavras”, diz: “Para mim poderoso é aquele que descobre/ as insignificâncias (do mundo e as nossas).” Descobrir as próprias insignificâncias é um poderoso exercício de autoconhecimento.
O Capítulo IV, “De BM para MB”, em que “Em forma de diário, BM relata passagens significativas da vida de MB”, daria, somente ele, um livro. Guardando uma cronologia dos registros, o autor vai desfiando uma série de acontecimentos importantes e interessantes (embora apresentados com toda a naturalidade de uma convivência cotidiana). José Hamilton Ribeiro toma a palavra novamente na conversa e reparte com Bosco histórias memoráveis de MB, como a impagável tentativa de recusa de Manoel a um convite feito pela Prefeitura de Curitiba, para que lá fosse fazer uma palestra, conceder entrevista coletiva e participar de um programa de TV. As desconcertantes respostas do poeta são a singeleza em pessoa: “1. Palestra não sei fazer; 2. Entrevista evito, mais ainda se for em bando; 3. Em televisão nunca fui.” Tais relatos vão tecendo, sutilmente, o perfil recatado e humilde do poeta, que culmina com o poema “O Andarilho”, cujo teor encerra uma modéstia oriunda de seu autoconhecimento. Se esse capítulo fosse um livro, sua capa poderia ser a foto (que se encontra ao final do capítulo) de Bosco sentado ao lado da estátua do poeta, situada na avenida Afonso Pena, em Campo Grande: imagem perfeita do subtítulo “O poeta, ardente como um soluço sem lágrimas.”
Os contornos suaves do duro metal da estátua de Manoel possuem a eloquência estética da linguagem verbal. Guardadas as diferenças dos suportes artísticos, ao contemplar a plasticidade dos contornos da fisionomia humilde do poeta, seu doce sorriso, sou remetida, imediatamente, a “O insofismável abecedário do poeta”, buscando, neste relicário semântico – assim como o escultor escolheu os cinzeis para esculpir as reentrâncias – os termos que comporiam a face do poeta. Talvez nem ele mesmo os encontrasse… Ele, que procurou-se a vida inteira. Nem mesmo as ilustres personalidades da “Crítica” (Capítulo VI) chegaram ao cerne do ser (verbo e substantivo) Manoel de Barros, pois ser Manoel e o ser Manoel somente seriam traduzíveis por “palavras arrombadas”, por uma transgressão linguística e semântica difícil de se cometer (pelo menos por nós mortais) … A linguagem formal é uma nebulosa que encobre o acesso ao âmago dos sentidos do poeta. Bosco, contudo, conduziu-nos a ele por outros caminhos; embora tenha usado palavras “gastas e acostumadas”, o conteúdo, a sinuosa sequência atemporal de fatos ordinários, de episódios e acontecimentos cotidianos, simples, permitiu-nos entrever, pela fresta do inteligível, a imagem sensível desse ser extraordinário.
Depois de tanta convivência, tanta intimidade gerada por esses “Diálogos”, sinto-me amiga do poeta. Mentira? “Só 10%… Tudo que não invento é falso.” Dei de falar sozinha, em “idioleto manoelês (o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e as moscas).” Flagrei-me conversando com o céu, noite dessas: “Quem segura o manto escuro são os preguinhos de luz.” Cheguei a sonhar que o encontrei! No encontro, desconsolada, perguntei: “Poeta, por que não amarrou direito o tempo no poste?!” Ao que ele me respondeu serenamente: “Eu não caminho para o fim, caminho para as origens” … Acordei emocionada, o coração aos pulos… A luz da manhã (menor que a dele) filtrada pela janela iluminava o livro em minha cabeceira. Antes de olhar as horas, fito-o, na capa, a sorrir de minha agitação… suspiro… Agora tenho certeza: ele está olhando para mim, sim!
(*) Rita de Cássia Pacheco Limberti é semioticista e crítica de arte
(Bonito, inverno, 2024)