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Fogo atinge 80% de santuário das araras azuis no Pantanal

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Queimada na Fazenda Caiman, em Miranda, foi controlada com a chegada de frente fria, mas danos ambientais ainda estão sendo calculados

Por Claudia Gaigher*

O tronco de um imenso angico vermelho (Anadenanthera colubrina var. cebil) continua fumegando, como uma fornalha no meio do campo coberto por cinzas. Apesar da chuva de 50mm no dia anterior, os resquícios do fogo permanecem nos campos. O incêndio já foi contido na área do refúgio ecológico Caiman, no município de Miranda. A chuva e o frio chegaram ao Pantanal, mas ainda assim, os troncos em brasa continuam ativos.

“Aqui temos o exemplo de como as árvores grandes demoram, ficam queimando. Choveu bastante e aqui um tronco e ainda soltando chamas, a hora que a chuva parar isso pode reascender e continuar queimando”, foi o que disse Neiva Guedes, presidente do Instituto Arara Azul.

A explicação ocorreu diante de tronco em brasa, no meio do caminho de uma área onde tem várias caixas ninho de araras azuis instaladas. O pico dos incêndios, que começou no dia 1º de agosto, passou com a ajuda da frente fria que chegou ao Pantanal, mas as consequências e riscos ainda preocupam. Neiva Guedes contou que o fogo faz parte da dinâmica do Pantanal, mas não com a intensidade dos incêndios atuais.

“Nós já enfrentamos vários incêndios aqui ao longo dos anos. Este incêndio é sem precedentes. Ele foi muito forte, queimou demais em uma escala muito grande. Em 48 horas as chamas varreram tudo”, diz.

A base de campo do Instituto Arara Azul fica na Caiman, já são mais de três décadas de parceria. A propriedade é uma verdadeira arca de Noé, morada de muitos animais em vida livre que aqui são protegidos. O pioneirismo no apoio à pesquisa de monitoramento e conservação de fauna no Pantanal transformou a fazenda em um importante ponto de apoio para os cientistas. É hoje o maior centro natural de reprodução das arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus) no mundo.

Pelo menos dez caixas/ninhos foram afetadas pelo fogo. Em uma piúva bem alta, a caixa que estava instalada no tronco desapareceu, a cinta metálica para impedir a subida de predadores foi chamuscada e a árvore ficou completamente carbonizada. Neiva se assustou ao encontrar no chão apenas algumas pilhas da câmera trap que ficava no alto gravando o comportamento das araras. Toda a estrutura derreteu com a intensidade das chamas.

Por 26 anos essa árvore abrigou um ninho artificial onde nasceram vários filhotes de araras-azuis. Mas desta vez, não restou nada. Os dois ovinhos que já estavam ali, desintegraram durante o incêndio.

“No momento do fogo nós tínhamos 21 ovos em ninhos ocupados pelos casais de araras-azuis aqui na Caiman. Dois foram perdidos. As araras continuam incubando os ovos e alguns ninhos não foram atingidos pelo fogo. Agora é aguardar e ver se os filhotes vão sobreviver, porque teve muita fumaça”, explica Neiva.

Fumaça de incêndios florestais afeta os embriões dentro do ovo. Os gases tóxicos penetram pela porosidade da casca e chegam até o embrião. Maria Eduarda Monteiro, médica veterinária do Instituto Arara Azul, percorreu os pontos onde estão os ninhos com ovos para saber se os embriões estavam saudáveis.

“Durante os monitoramentos, nós conseguimos realizar a ovoscopia, onde visualizamos o embrião dentro do ovo por meio da luz e confirmamos o desenvolvimento do embrião, conseguimos ver se tem movimento embrionário, se tem batimento cardíaco, pois temos um equipamento para fazer esse exame. Na primeira ovoscopia que fizemos após o fogo encontramos dois embriões, em dois ovos de arara-azul, eles estavam saudáveis, com movimento embrionário, já era possível ver vasos sanguíneos e isso deixou a equipe muito feliz”, diz, animada. Um suspiro diante de tamanha tragédia.

Mas ainda tem outra consequência do fogo que ameaça o ano reprodutivo das araras-azuis. Os bosques de palmeiras acuri, principal alimento das araras-azuis, foram queimados. Os cachos de acuri viraram carvão. A arara-azul é especialista, se alimenta principalmente da castanha de coco do acuri e de bocaiuva. Mas não tem muita comida disponível depois da passagem das chamas. Além disso, árvores altas, com potencial para instalação de caixas ninho, foram queimadas e caíram.

“O impacto é maior do que só a consequência imediata da passagem do fogo que queima ninhos, árvores, ovos, equipamentos. O impacto se estende por anos depois dos incêndios. Temos resultados de pesquisas feitas em anos anteriores onde, como consequência dos incêndios, nasceram filhotes debilitados, com baixa imunidade, desenvolvimento de lesões na pele e até morrendo. Diminui a taxa de reprodução, diminui a taxa de sobrevivência”, explica Neiva.

O alívio inicial guarda uma preocupação por causa dos resultados das pesquisas após outros incêndios em anos anteriores. Depois que o fogo passa, as araras-azuis precisam de muito esforço para garantir a reprodução. Toda a fauna pantaneira precisa gastar energia para sobreviver, buscar água e comida.

Na manilha embaixo de uma passagem na estrada de terra, uma onça-pintada estava deitada fugindo do calor. As patas avermelhadas e queimadas. Uma força tarefa foi montada unindo a equipe de funcionários da Caiman e os integrantes dos projetos de pesquisa que tem base na fazenda. Os grupos percorrem os campos diariamente em busca de animais feridos pelo fogo.

Com a orientação dos profissionais do Grupo de Resgate Técnico Animal do Pantanal, eles espalham frutas e legumes em pontos estratégicos para alimentar os animais que sobreviveram. E quando encontram algum bicho ferido, os médicos veterinários dos projetos Onçafari e Arara Azul fazem o primeiro atendimento. A coordenação deste trabalho de atendimento à fauna é feita pela médica veterinária e presidente do Instituto Tamanduá, Flávia Miranda.

“A ideia agora é a gente montar esse hospital veterinário na casa que é a base do Instituto na Caiman, para atender os animais que estão aqui e nas fazendas vizinhas. Fazer um primeiro atendimento emergencial, estabilizar o animal para que depois ele possa ir para o centro de reabilitação de animais silvestres em Campo Grande”.

Há um ano, o Instituto Tamanduá foi convidado pelo proprietário da Caiman, Roberto Klabin, para montar uma base de campo e pesquisa na fazenda. A equipe estava na fase de levantamento de fauna e instalou 30 câmeras trap na RPPN (Reserva Particular de Patrimônio Natural) Dona Aracy, para fazer o primeiro mapeamento das espécies que vivem por ali e principalmente para monitorar o comportamento dos tamanduás e tatus. Essa imensa área de pantanal nativo queimou completamente. Oitenta por cento do Refúgio Caiman queimaram.

No esforço de mitigar os efeitos desse incêndio, a prioridade está sendo o ambulatório e a construção de recintos para abrigar os animais em recuperação. “No fogo o mais importante para sobrevivência do animal é fazer o primeiro atendimento, estabilizar esse animal. Ele desidrata muito rápido. Aqui a gente vai ter condições de fazer bastante coisa: hidratar o animal, fazer atendimento de sutura, microcirurgia, curativos, medicação. Um atendimento inicial, e se o animal precisar de um atendimento de longo prazo, podemos enviá-lo para os recintos de recuperação indicados pelo Grupo de Resgate Técnico e Animal do Pantanal”, explica Flávia Miranda.

O esforço para salvar os animais une os profissionais de todos os institutos de pesquisa que atuam na Caiman. O Onçafari, que há mais de uma década trabalha no Pantanal fazendo monitoramento, reabilitação e habituação de onças-pintadas, cedeu dois dos seus recintos que foram parcialmente atingidos pelas chamas, e lá estão abrigadas uma onça e uma anta encontradas com queimaduras na fazenda. Os médicos veterinários dos projetos de pesquisa estão responsáveis pelos cuidados e a cada dia os animais se recuperam e respondem bem ao tratamento.

União contra o fogo

Roberto Klabin, proprietário da Fazenda Caiman, e Neiva Guedes, presidente do Instituto Arara Azul. Foto: Claudia Gaigher.

As imagens da devastação são impactantes. Os recintos destruídos pelo fogo, os ninhos queimados, a vegetação calcinada. Os semblantes cansados e entristecidos, mas a determinação não foi abalada.

“Ninguém combate um fogo da magnitude do que vivemos este ano. Infelizmente, diante da tragédia que vivemos, medidas devem ser tomadas. O manejo integrado do fogo é fundamental e a liberação de licenças precisa ser mais rápida”, comenta Roberto Klabin, proprietário da Fazenda Caiman, que afirma que embora seja fundamental o treinamento de brigadistas nas propriedades, nem todos os proprietários têm condições de montar os seus sistemas de prevenção e combate ao fogo. “Quem sabe podemos criar agrupamentos de fazendas para atuar juntas e criar meios de alerta antecipado? Pode ser um caminho”, diz.

Aumentar a resiliência com estruturas de armazenamento de água, abrigo para os animais, escavação de poços, investir em restauração e proteção da fauna e da flora pode ser um caminho.

Para Klabin é hora de entender o momento climático, as alterações e ameaças e buscar medidas de adaptação. “Acredito que o Pantanal pode se recuperar. O problema é a reincidência de grandes incêndios, então temos de aumentar a resiliência e adaptação […]. Vamos buscar parcerias, dar apoio aos cientistas e encontrar juntos caminhos para que o Pantanal continue sendo um lugar onde é possível experienciar a natureza. Temos de mostrar para o brasileiro e para o mundo que esse bioma tem vocação para turismo de observação de fauna, para produção de conhecimento científico, e principalmente, mostrar que existe ainda uma biodiversidade incrível que temos de conservar”, finaliza.

(*) Claudia Gaigher é jornalista ambiental especializada na cobertura dos biomas brasileiros, em especial o Pantanal 
Fotos: Claudia Gaigher
Reportagem publicada primeiro no portal o ((eco)) em 9.8.2024

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