Entre as inovações estão a inclusão de uma parte específica sobre direito digital e a ampliação do conceito de família.
Por Rodrigo Baptista – AGÊNCIA SENADO
As mudanças seguem decisões recorrentes tomadas por tribunais Brasil afora. Entre as inovações estão a inclusão de uma parte específica sobre direito digital e a ampliação do conceito de família.
O Código Civil regula toda a vida das pessoas, mesmo antes do nascimento e até depois da morte, passando pelo casamento, sucessão e herança, além das atividades em sociedade, como a regulação de empresas e de contratos. É uma espécie de “constituição do cidadão comum”.
Anteprojeto entregue
O Senado recebeu oficialmente nesta quarta-feira (17) o anteprojeto do Código Civil elaborado por uma comissão de juristas. A entrega ocorreu no Plenário durante uma sessão de debates temáticos convocada para discutir as sugestões de mudanças e atualizações no conjunto de regras que impactam a vida do cidadão desde antes do nascimento e têm efeitos até depois da morte do indivíduo, passando pelo casamento, regulação de empresas e contratos, além de regras de sucessão e herança.
A partir de agora caberá aos senadores analisar a proposta que será protocolada como projeto de lei pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Pontos podem ser incluídos, alterados ou até mesmo excluídos.
Durante a sessão, Pacheco agradeceu o empenho do grupo coordenado pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e destacou que o país e o mundo passaram por profundas transformações desde a edição do Código atual (Lei 10.406, de 2002).
— Na virada do século não existiam redes sociais. Diversos direitos não haviam sido institucionalizados. Os arranjos familiares oficialmente aceitos eram bastante restritos. Posso dizer sem exageros que ganhamos uma bússola.[…] Parlamentares vão trazer muitas contribuições ao texto, aprimorando, alargando, eventualmente restringindo seu alcance. Mas o fato é que a peça produzida por esta comissão de juristas é o alicerce a partir do qual as paredes de um Código Civil atual e moderno serão edificadas — disse Pacheco.
“Nós éramos felizes e não sabíamos”, brincou o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em relação ao comentário do presidente do Senado sobre a inexistência de redes sociais quando da edição do atual Código Civil. Moraes esteve recentemente envolvido em embates com o empresário Elon Musk, dono do X (antigo Twitter). Para o ministro, a atualização do código vem em boa hora e traz avanços na regulamentação das redes e em questões do cotidiano dos brasileiros.
— Há necessidade dessa regulamentação, do tratamento da responsabilidade, do tratamento de novas formas obrigacionais. Então, a comissão fez exatamente isso — apontou.
Atualização
O presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, Luis Felipe Salomão, disse que parte das sugestões segue a jurisprudência, ou seja, decisões que vêm sendo tomadas em tribunais do país.
— Essa comissão criou uma interação para que pudéssemos trazer ao Senado todos os avanços técnicos jurídicos que nós conseguimos obter, seja pelo consenso da doutrina, seja pelos avanços da jurisprudência, seja pelos enunciados em jornadas que foram realizadas ao longo desse tempo. Tudo isso foi consolidado nesse texto, mercê do talento dos juristas que aqui hoje participam dessa entrega simbólica, mas, ao mesmo tempo, muito carregada de conteúdo que nós apresentamos ao eminente presidente — disse o ministro do STJ.
Na mesma linha, o ministro do Superior Tribunal de Justiça e vice-presidente da comissão de juristas, Marco Aurélio Bellizze; e o professor e relator-geral do anteprojeto Flávio Tartuce apontaram que o anteprojeto apresentado é uma proposta de reforma que reflete a visão majoritária do direito civil hoje no país.
— Nós estamos entregando para esta Casa um projeto que expressa a posição hoje do direito civil brasileiro. E cabe agora ao Congresso Nacional analisar aqueles textos, aquelas alterações que convêm e aqueles que não — afirmou Tartuce.
Participação de mulheres
Pela primeira vez, a redação do Código Civil contou com a participação de juristas mulheres. A professora Rosa Maria de Andrade Nery, que também foi relatora-geral do texto, citou versos da poetisa Cora Coralina para ilustrar a importância do trabalho das juristas.
— Este livro também foi escrito por mulheres que fizeram a escalada da montanha da vida, removendo pedras, plantando flores. Este livro: Versos… Não. Poesia… Não. Apenas um modo diferente de contar velhas estórias” — recitou.
Entre as principais novidades do texto está a inclusão do chamado direito digital, medida que coloca o Brasil na vanguarda em termos de código civil, de acordo com a relatora parcial da Subcomissão de Direito Civil Digital, a advogada e professora Laura Porto:
— Nós estamos vivendo em uma era totalmente digital, onde as novas tecnologias permeiam todas as esferas das nossas vidas, e elas transformaram radicalmente toda a nossa forma de nos relacionar, de trabalhar e até de interagir. Nesse contexto, se torna imprescindível que o nosso arcabouço legal esteja alinhado com os desafios e as demandas deste mundo contemporâneo — observou.
Na avaliação da senadora Damares Alves (Republicanos-DF), a atualização do Código é urgente diante das mudanças sociais e tecnológicas. Ela disse esperar que a proposta avance rapidamente.
— Vamos agora para os debates, ouvir o nosso povo e, com certeza, no diálogo, trazer o consenso para a gente entregar para o Brasil uma reforma que não vai ser perfeita, nunca, mas uma reforma que atenda às necessidades do nosso povo — disse.
Comissão
O trabalho do grupo de 38 juristas começou em agosto de 2023. Foram analisadas 280 sugestões da sociedade e realizadas várias audiências públicas, com o apoio da Consultoria Legislativa do Senado, para chegar a um texto com mais de mil artigos.
O atual código substituiu o chamado Código Beviláqua, que foi promulgado em 1916.
Conheça as principais mudanças:
Família
Ampliação do conceito de família
Prevê a família conjugal (formada por um casal) e o vínculo não conjugal (mãe e filho, irmã e irmão), que passa a se chamar “parental”
Substitui o termo “entidade familiar” por “família”; “companheiro” por “convivente” e “poder familiar” por “autoridade parental”
Socioafetividade
Reconhece a socioafetividade, quando a relação é baseada no afeto e não no vínculo sanguíneo
Multiparentalidade
Reconhece a multiparentalidade, coexistência de mais de um vínculo materno ou paterno em relação a um indivíduo
Registro/DNA
Prevê o registro imediato da paternidade a partir da declaração da mãe quando o pai se recusar ao exame de DNA
Vida
Reconhece a potencialidade da vida humana pré-uterina e a vida pré-uterina e uterina como expressões da dignidade humana
Casamento e divórcio
União homoafetiva
Legitima a união homoafetiva, reconhecida em 2011 pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
Acaba com as menções a “homem e mulher” nas referências a casal ou família
Divórcio unilateral
Prevê o divórcio ou dissolução de união estável solicitados por uma das pessoas do casal, sem a necessidade de ação judicial
O pedido deve ser feito no cartório onde foi registrada a união. O cônjuge será notificado e terá um prazo para atender
Regime de bens
Permite alteração do regime de bens do casamento ou da união estável em cartório; hoje só com autorização judicial
Alimentos gravídicos
Cria os chamados “alimentos gravídicos”, pensão que será devida desde o início até o fim da gestação
Reprodução assistida e doação de órgãos
Reprodução assistida
Proíbe o uso das técnicas reprodutivas para criar seres humanos geneticamente modificados, embriões para investigação científica ou para escolha de sexo ou raça
Óvulos e espermatozoides
Veda a comercialização de óvulos e espermatozoides
Não reconhece vínculo de filiação entre o doador e a pessoa nascida a partir do seu material genético
Doação de órgãos
Dispensa autorização familiar para doação de órgãos quando o doador falecido tiver deixado, por escrito, permissão para o transplante
Sem manifestação prévia, a autorização poderá ser dada por familiares
Saúde
Garante o direito de a pessoa indicar antecipadamente quais tratamentos de saúde deseja ou não realizar, caso fique incapaz no futuro
Barriga solidária
Proíbe a “barriga de aluguel”
Autoriza a barriga solidária, desde que a gestação não seja possível em razão de causa natural ou em casos de contraindicação médica
Animais
Seres sencientes
Considera os animais seres capazes de ter sensações e emoções, e com proteção jurídica própria
Indenização
Prevê reparação por maus-tratos e indenização a quem sofra dano moral por problemas com seu animal de estimação
Despesas
Guarda e despesas de manutenção de animais de estimação podem ser compartilhadas entre ex-cônjuges
Bens
Herança
Cônjuges deixam de ser herdeiros se houver descendentes (filhos, netos) e ascendentes (pais, avós). Nesse caso, apenas esses terão direito à herança
Doação de bens
Doações de pessoa casada ou em união estável a amantes podem ser anuladas pelo cônjuge ou por seus herdeiros até dois anos depois do fim do casamento
Usucapião
Pedido em cartório
Possuidor de imóvel pode requerer diretamente ao cartório — e não mais ao juiz — a declaração de aquisição da propriedade por meio de usucapião
Rural
Para combater a grilagem, o direito ao reconhecimento de propriedade só pode ser exercido uma única vez. Hoje não há limite na lei
Urbano
Quem ocupar moradia de até 250m² em área urbana por cinco anos ininterruptos e sem oposição poderá ser seu dono
Familiar
Quem exercer a posse de um imóvel urbano de até 250 m² que dividia com ex-cônjuge ou ex-convivente que saiu do local por dois anos ininterruptos terá a propriedade integral
Dívidas e prescrição
Dívidas
Proíbe penhora de imóvel do devedor e sua família se for o único bem que possuírem
Moradia de alto padrão pode ser penhorada em 50%. A outra metade permanece em posse do devedor
Prescrição do direito
Reduz de 10 para 5 anos o prazo geral de prescrição (limite de tempo em que se pode pedir na Justiça o cumprimento de um direito)
Juros
Contratos não podem prever taxas de juros por inadimplência maiores que 2% ao mês
Empresas
Liberdade contratual
Reforça a ideia de liberdade contratual, principalmente nas contratações em que as partes estejam em igualdades de condições
Empresa estrangeira
Exige que sociedades estrangeiras tenham sede e representante no Brasil para atuar no país
Direito digital
Fundamentos
Cria o direito digital, estabelecendo direitos e proteção às pessoas no ambiente virtual
Garante a remoção de links em mecanismos de buscas de conteúdos que tragam imagens pessoais íntimas, pornografia falsa, e crianças e adolescentes
Cria possibilidade de indenizações por danos sofridos em ambiente virtual
Plataformas digitais passam a responder civilmente pelo vazamento de dados e devem adotar mecanismos para verificar a idade do usuário
Patrimônio digital
Define patrimônio digital como os perfis e senhas de redes sociais, criptomoedas, contas de games, fotos, vídeos, textos e milhas aéreas
O patrimônio digital pode ser herdado e descrito em testamento
Sucessores legais podem pedir a exclusão ou conversão em memorial dos perfis em redes sociais de pessoas falecidas
Identidade e assinatura digital
Regulamenta o uso de assinatura eletrônica
Reconhece a identidade digital como meio oficial de identificação dos cidadãos
Inteligência artificial
Exige identificação clara do uso de IA
Exige autorização para criação de imagens de pessoas vivas e falecidas por meio de IA