Campo Grande acolheu, ao longo do tempo, idiomas diversos. Das muitas nacionalidades que aqui aportaram, destacam-se os árabes, apelidados “turcos”

Por Eddson Carlos Contar (Alkontar)*
Aqui, ao contrário das diferenças e desentendimentos que, muitas vezes, separam os povos árabes por conta da religiosidade, observamos que cristãos – ortodoxos, maronitas e romanos -, muçulmanos, druzos e até judeus se respeitam e mantêm laços de amizade e confraternização, sendo comum frequentarem igrejas e mesquitas em datas especiais.
É como se os ares de Campo Grande os elevassem num astral de fraternidade que supera o fanatismo ou mágoas, existentes em suas origens.
A cidade conta com uma bela mesquita muçulmana, uma igreja ortodoxa, além das inúmeras igrejas católicas que têm, entre seus fiéis, muitos dos árabes aqui radicados.
É desse “abraço” de Cristo com Maomé que os “turcos” convivem na paz e no trabalho que tanto os fazem respeitados na cidade morena.
ÁRABES, CAMPO-GRANDENSES DE CORAÇÃO
A Campo Grande idealizada pelos mineiros fundadores acolheu, ao longo do tempo, idiomas diversos e os traduziu em participação, trabalho e construção de uma linda e progressista cidade, hoje capital de Mato Grosso do Sul.
Das muitas nacionalidades que aqui aportaram, destacaram-se os árabes, apelidados “turcos”, por serem muitos deles oriundos de países que sofreram a dominação otomana, sendo obrigados a usar passaportes com a chancela turca. Outros tinham seus passaportes emitidos no Líbano, tornando-se, assim, “libaneses” por adoção documental.
Aqui formaram uma grande colônia, deixando de lado diferenças religiosas, culturais e até mesmo de línguas, nem sempre idênticas no mundo árabe.
Primeiro chegaram os libaneses e sírios, depois os armênios, egípcios e, finalmente, os jordanianos, palestinos e iraquianos.
Nos registros da história de Campo Grande, já existiam marcas da passagem desses imigrantes desde o final do século XIX, quando Marão Abalen, Amam Saaf e um Maluf teriam permanecido por pouco tempo no arraial, tomando rumo ignorado sem deixar registros de suas atividades no local, exceto Marão Abalen que teria se instalado em Aquidauana.
Somente no início do século XX, mais precisamente em 1908, chegaram oficialmente os primeiros libaneses: Felipe Saad, Eduardo Contar, Moises Sadalla, Moises Maluf, Salomão Mahmud (sírio) e os irmãos Cesário e Abel Calarge. Todos vinham como mascates e, daqui, percorriam a região, apresentando e vendendo suas mercadorias que eram sempre novidades para a população.
Logo os comerciantes locais, temendo a concorrência dos “turcos novidadeiros”, tomaram-se de ciúmes e, julgando-se prejudicados em seus negócios, pressionaram a Intendência (Prefeitura) a tomar medidas drásticas contra os concorrentes.
Não tardou muito e o Intendente da época, Sebastião Lima (também comerciante), decretou pesadíssimas taxas para que os mascates pudessem exercer suas atividades na praça. O imposto equivalia ao valor de cento e sessenta vacas ao preço de então… Um absurdo que tomava impossível o trabalho dos mascates por aqui.
Os turcos”, no entanto, não desistiram. Aprendiam rapidamente nossos costumes e logo idealizaram um jeitinho de burlar tal injustiça: alugavam ou construíam salões e casas e instalavam, no local, casas comerciais, ficando assim em igualdade de condições com os demais, pagando impostos bem mais baixos.
O detalhe importante dessa história foi que, além do comércio normal, não deixavam de fazer suas visitas porta a porta, oferecendo suas mercadorias e fazendo valer sua índole fenícia na arte de comercializar diretamente, facilitando a vida do freguês e ampliando suas oportunidades de venda.
A sagacidade dos mercadores árabes levou-os a tomarem-se fornecedores dos comerciantes locais, antes seus inimigos. Saiam de Campo Grande em lombo de burros ou cavalos e iam pelas fazendas, vendendo seus produtos até Porto Esperança no Pantanal e, de lá, iam de navio até Corumbá, onde recebiam novas mercadorias vindas da Argentina e do Rio de Janeiro. promovendo a renovação de seus estoques e revendendo ao comércio da Vila.
A partir de 1914, o abastecimento do nosso comércio passou a ser feito através da estrada de feno e as mercadorias vinham direto de São Paulo, evitando-se as longas viagens em muares e em vagarosos carros de boi. Corumbá foi para muitos deles a porta de entrada para Campo Grande, pois somente depois da advento do trem, começaram a chegar por Três Lagoas.
Dos primeiros que aqui se instilaram, somente Salomão Saad e Eduardo Contar vieram de Belém do Pará, navegando até Corumbá e, de lá, para Campo Grande, numa viagem que durou meses em barcos e navios para atravessar a Amazônia.
O sucesso dos árabes no comércio, além da característica natural de mercadores, provém também do espirito de união que possuem, sendo comum ajudarem-se no início de suas vidas em países estrangeiros.
Os daqui tiveram sempre a orientação e apoio de outros mais experientes, sediados em São Paulo e Rio de Janeiro, esta última a então capital da República.
PIONEIROS
Até o ano de 1930 foram muitas as famílias que vieram somar-se aos precursores patrícios, destacando-se os Alle, Abouche, Bedoglin, Abussafi, Bacarat, Darii. Jorge, Nacer, Nabhan, Náglis, Scaff, Sadala, Sahib, Thomaz, Raslan, Mastoub, Zaidan, Zahran, Domingos, Dib, Abrão, Rezek, Damous, Feres, Abdo, Boutros, Adri, Abuassan, Amizo, Abdulahad, Mala, Anache, Dibo. Daige, Buaianain, Nachif, Aquim, Ayub, Bacha, Adese, Abouche, Bunazar, Bittar, Maluf, Basmage, Bacach, Bechuate, Catan, Chacha, Chaia, Cury, Scaff, Charbel, Sater, Chedid, Chequer, Elosta, Eluf, Duailibi„ Elkouri, Nimer, Fraiha, Chaia, Possik, Gazal. Garib, Hadad, Hamana, Hambra. Saigali, Jeha, Khouri. Meres, Mansour, Nasser, Murad, Melke, Macaron, Millan, Macksoud, Neder, Jallad, Jafar. Nahas, Nemer, Nassar, Narnour, Siufi, Orm, Ourives, Razuk, Saliba,Salomão, Seba, Salamene, Saddy, Saueia, Tannous,Sleiman,, Tobji, Waked, Warde, Yussif, Yussef, Zaidan, Zaher, El Daher, Mohamed, Assem e outros, todos sírios, libaneses e uns poucos turcos que, entre outros, participaram ativamente no desenvolvimento da Campo Grande de hoje.
Boa parte desses imigrantes deslocou-se de Corumbá, Miranda e Aquidauana, cidades que, no início do século XX, acolheram os primeiros árabes no sul do então Estado de Mato Grosso.
Muitos acabaram por trazer irmãos e parentes para Campo Grande, criando um novo mundo para famílias inteiras, que se transferiram do longínquo Oriente Médio para terras, antes estranhas, que atualmente consideram sua segunda pátria.
CHEGAM OS ARMÊNIOS
Parece impossível, mas o povo armênio, mesmo dominado durante séculos por diversos impérios e dinastias, jamais perdeu sua identidade.
Conservam com orgulho seus costumes, sua cultura, religião, língua e tradições.
Os primeiros deles chegaram à nossa cidade, no início dos anos trinta, e aqui plantaram raízes que, hoje, marcam sua história na vida da Capital, assim como o fizeram em diversas cidades do Brasil.
Comerciantes, aqui instalaram lojas que se tornaram famosas e tradicionais, disputando com os libaneses e sírios os melhores pon-tos da cidade.
Famílias como Arakelian, Demirdgian, Sarian. Balabanian, Puxian, Balian, Boiadjian, Tclian, Altounian, Banboukian, Orondjian, Kodjaoglanian, Chekerdmian, Chinzarian e Dikran,Kassuan, Balian, Araquian, marcaram época no comércio e seus descendentes são hoje figuras de destaque nas profissões liberais que abraçaram.
QUASE CEM ANOS DE OCUPAÇÃO
Desde a chegada dos primeiros árabes, a visão de negócios os levou a ocupar espaços físicos que viriam a ser os mais importantes na nossa vida comercial.
Enquanto os brasileiros iniciaram a instalação de suas lojas na chamada rua Velha, hoje 26 de agosto, os —turcos” foram se acomodando ao longo da rua 14 de julho, presentemente a principal artéria comercial da cidade.
Na época, a Catorze não passava de um caminho aberto para se chegar à futura estação ferroviária, que viria a ser construída na rua Maracaju, esquina com rua Pandiá Calógeras, bem próxima dos primeiros estabelecimentos por eles criados.
Foi na velha 14 de julho que surgiram as grandes lojas de tecidos, calçados, ferragens, bares e restaurantes, alfaiatarias, joalherias, mercearias, eletrodomésticos e outros ramos, quase todas pertencentes aos árabes, motivando o apelido de “rua dos Turcos”, como ficou conhecida por muitos anos.
Somente em meados dos anos noventa, o surgimento e “boom” das grandes lojas, magazines nacionais e shoppings desestimularam os “turcos”, que passaram a vender seus pontos comerciais, mesmo porque seus filhos e netos, já formados em profissões diversas, não mais se interessaram em dar continuidade à atividade exercida por seus ascendentes.
Uma a uma, foram fechando suas porias as grandes lojas que marcaram a época áurea da formação e construção da cidade, que se tornou um verdadeiro empório regional, atendendo populações de diversas cidades do Estado e nas quais se encontrava de tudo. a exemplo dos grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro.
Até poucos anos, como à resistir à invasão “estrangeira”, existiam apenas duas das tradicionais lojas comerciais na 14 de julho: “Armazém Troncoso” e “Alberto José Abrão Presentes”. Em outro ponto da cidade, a centenária “Palace Royal”, que sobreviveu à administração de quatro gerações da família Náglis, e a “Casa Calarge” (Gaburas), no Shopping Campo Grande.
São os marcos que ficaram na saudade dos bons tempos das “lojinias” que, geralmente tinham nos fundos a residência dos proprietários e, nas noites de verão, mantinham lindas vitrines abertas e iluminadas, enfeitando o “footing” noturno, grande atração da cidade nos tempos românticos da “rua dos turcos”.
OUTROS ‘TURCOS’
Nos anos trinta, os egípcios também se fizeram presentes na história de Campo Grande e, como os demais imigrantes, dedicaram-se ao comércio em geral.
Na década de setenta, vieram para cá duas famílias iraquianas que aqui ainda permanecem: Zouhair Georges Adamou e Mussida.
Nos últimos anos, somaram-se á colônia árabe os jordanianos. em menor número, mas com a mesma intenção de se realizar e participar no desenvolvimento da Campo Grande que os adotou.
HERANÇA TURCA
Existe um ponto comum entre os nossos turcos.”…
Todos construíram aqui suas famílias, adquiriram bens, formaram os filhos e deixaram exemplos de dignidade, dedicação profissional e respeito.
Seus descendentes, fiéis às qualidades herdadas, destacaram-se em diferentes ramos de atividade, tomando-se figuras proeminentes na vida da cidade.
Dentre estes, podemos citar Alberto e Alfredo Neder, Alfredo Abrão – na Medicina, Roberto Duailibi – na Propaganda, Aracy Balabanian e Almir Sater – na Cultura, Benjamin Adese – na Política, Annes Salim Saad – na Engenharia. Eduardo Elias Zahran – na Comunicação, Alexandre Amin Saad, Nagib Raslan e Pedro Chaves (Chadid) – na Educação, Humberto Neder e Michel Nasser – na Telefonia, e milhares de outros especialistas notórios em todas as áreas da vida campo-grandense. Impossível nominar todos.
A colônia árabe, incluindo descendentes, é de aproximadamente cem mil, número significativo numa população estimada em milhão de habitantes. Costuma-se dizer que Campo Grande era como uma ilha: um monte de árabes, cercados de japoneses por todos os lados.
REPRESENTAÇÕES
Embora a presença dos árabes por aqui seja significativa. nem todos têm ainda uma representação oficial que os proteja e oriente em suas necessidades. Somente a Síria e o Libano mantêm um consulado em Campo Grande.
Foi Jorge El Sayegh, um dedicado libanês, foi que idealizou e construiu o busto em homenagem ao fundador de Campo Grande, localizado na Avenida Afonso Pena, esquina com a Avenida Calógeras.
CHEGAM OS PALESTINOS
Nos anos sessenta, um novo povo árabe chega a Campo Grande, somando-se a irmãos “turcos” na arte de comercializar. São os sofridos palestinos, cuja terra invadida e dominada ao longo dos séculos, buscavam, em outros países, o refúgio e oportunidades de sobreviver com suas famílias.
Dezessete famílias se instalaram ao longo da Avenida Calógeras e formaram ali seu “habitat”, adotando o velho hábito de manter residência nos fundos das lojas.
Este costume tem uma particularidade que muitos desconhecem: além de cuidar de perto dos seus negócios, aqueles comerciantes, sempre sentados à porta dos seus estabelecimentos, mesmo nos feriados e domingos, vez por outra atendiam os fregueses que buscavam mercadorias para uso próprio ou presentes de última hora.
Longe da intenção de burlar a fiscalização, o que os “turcos” gostavam mesmo era de atender sua clientela e manter vivo o espírito mercador que os identificava como vendedores natos.
Mesmo com a evasão dos árabes da 14 de julho, muitos dos palestinos da Calógeras mantêm, ainda, suas pequenas lojas de armarinhos e utilidades abertas, indiferentes à concorrência dos grandes estabelecimentos que se espalharam pela vizinhança.
Assim, como resistem em sua terra aos avanços dos atuais inimigos, resistem aqui ao poder de fogo das grandes empresas comerciais existentes. Entre os remanescentes, ainda estão por lá os Hassar, Amin, Youssef, Sbeitan, Issa, Ale!, Assaf, Kahader, Salem, Naji, Hussein e Ibrahim.
CIDADES IRMÃS
Um fato interessante fez com que as famílias libanesas de Ras-El-Mathen se tornassem irmãs de Campo Grande. Curiosamente, a pequena vila encravada nas montanhas que rodeiam Beirute, tem aqui representantes de todas as famílias lá re-sidentes.
A vinda dos Contar, Saad e Sadala atraiu outros druzos de Ras-El-Mathen e, em pouco tempo, aqui chegaram os Zaidan, Nabhan, Chadid, Derzi, Raslan. Mastoub, Fraiha e, finalmente, os Salha (aqui chamados Salles).
Assim, completou-se essa integração e, até os dias de hoje, os descendentes de todas essas famílias ocupam lugares relevantes na vida campo-grandense.
‘MIL HISTÓRIAS SEM FIM’
Impossível descrever-se toda a participação dos árabes em nossa história que contou, também, com irmãos de outros países e com brasileiros de muitas plagas, provando que, numa Babel de tantas línguas e sotaques, podem existir entendimento e integração.
E foi com esse espírito de fraternidade que contribuíram para o desenvolvimento de uma metrópole que se agiganta a cada dia, fazendo a alegria e a felicidade daqueles que adotaram o Brasil como sua segunda pátria.
Consequentemente, tomaram-se dignos da cidadania natural do lugar que escolheram para viver e construíram o futuro dos descendentes, que ai estão, dedicando-se à política, medicina, direito, engenharia, arquitetura, odontologia, carreiras militares, indústria, comércio, turismo, hotelaria, comunicações e em todos os ramos de atividade que impulsionam nosso progresso.
Seriam histórias para muitos livros que nunca teriam fim, porque, permanentemente, as gerações se sucedem e cresce o número de novos “turcos” na “cidade morena” do Centro-Oeste brasileiro.
Allah proteja a todos !
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Imagem do destaque: Mesquita Campo Grande – Reprodução-Internet
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(*) Eddson Carlos Contar é historiador, escritor, poeta, jornalista e compositor (Bisneto do fundador José Antônio Pereira, pelo lado materno e filho de pai libanês, Eduardo Contar